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ESPECIAL
25/09/2016
08:00
Desconsideração inversa combate abusos na utilização da pessoa jurídica
Embora não exista previsão legal específica, a jurisprudência do
Superior Tribunal de Justiça (STJ) admite, em casos excepcionais, a
responsabilização patrimonial da pessoa jurídica pelas obrigações
pessoais de seus sócios ou administradores.
Por meio da interpretação teleológica (finalística) do artigo 50 do
Código Civil (CC), diversos julgados do tribunal aplicam a
desconsideração inversa da personalidade jurídica – que afasta a
autonomia patrimonial da sociedade – para coibir fraude, abuso de
direito e, principalmente, desvio de bens.
Diz o artigo 50: “Em caso de abuso da personalidade jurídica,
caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial,
pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público
quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e
determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens
particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.”
De acordo com o ministro Villas Bôas Cueva, a lei civil brasileira
adotou a denominada teoria maior da desconsideração para admitir que o
patrimônio particular dos sócios ou administradores seja alcançado para
cobrir obrigações assumidas pela sociedade, quando verificado abuso por
parte deles, traduzido em desvio de finalidade ou confusão patrimonial (
REsp 1.493.071).
A situação inversa, ensina o ministro Cueva, pode ser aplicada
quando, por exemplo, sócios ou administradores esvaziam seu patrimônio
pessoal para ocultá-lo de credores.
Ou, conforme o ministro Marco Aurélio Bellizze, para responsabilizar a
empresa por dívidas próprias dos sócios, quando demonstrada a
utilização abusiva da personalidade jurídica (
AREsp 792.920).
Meação
Há ainda outra hipótese. A inversão pode ser requerida para
resguardar meação em dissolução de união estável. “Se o sócio
controlador de sociedade empresária transferir parte de seus bens à
pessoa jurídica controlada com o intuito de fraudar a partilha, a
companheira prejudicada terá legitimidade para requerer a
desconsideração inversa da personalidade jurídica”, afirmou a ministra
Nancy Andrighi em julgamento de recurso especial (
REsp 1.236.916).
Segundo a ministra, nesse caso, a desconsideração inversa combate a
prática de transferir bens para a pessoa jurídica controlada pelo
devedor, para evitar a execução de seu patrimônio pessoal.
“A desconsideração inversa tem largo campo de aplicação no direito de
família, em que a intenção de fraudar a meação leva à indevida
utilização da pessoa jurídica”, apontou Andrighi.
Ela mencionou duas situações no campo familiar em que a inversão pode
ser admitida: o cônjuge ou companheiro esvazia seu patrimônio pessoal e
o integra ao da pessoa jurídica para afastá-lo da partilha; ou o
cônjuge ou companheiro, às vésperas do divórcio ou dissolução da união
estável, efetiva sua retirada aparente da sociedade da qual é sócio,
transferindo sua participação para outro membro da empresa ou para
terceiro, também com o objetivo de fraudar a partilha.
Legitimidade
No caso analisado pela Terceira Turma, os ministros discutiram a
legitimidade da companheira, sócia minoritária, para requerer a
desconsideração da personalidade jurídica da empresa, tendo sido
constatada pelas instâncias ordinárias a ocorrência de confusão
patrimonial e abuso de direito por parte do seu companheiro, sócio
majoritário.
A relatora, ministra Nancy Andrighi, explicou que a desconsideração
inversa pretende alcançar bens ou rendimentos do ente familiar que, de
forma indevida, se confundiram com os da sociedade da qual é sócio.
“Nessa medida, a legitimidade para requerer a desconsideração é
atribuída, em regra, ao familiar lesado pela conduta do sócio”, disse.
Em seu entendimento, essa legitimidade decorre da condição de
companheira, sendo irrelevante a condição de sócia. Os ministros, em
decisão unânime, negaram provimento ao recurso especial da empresa.
Confusão patrimonial
Em maio deste ano, a Terceira Turma analisou recurso especial de uma
empresa que questionava a desconsideração inversa de sua personalidade
jurídica que fora deferida para a satisfação de crédito de
responsabilidade do seu controlador.
A partir do exame dos elementos de prova do processo, o juízo de
primeiro grau e o Tribunal de Justiça de São Paulo concluíram pela
ocorrência de confusão patrimonial entre duas empresas que estariam
vinculadas a um mesmo controlador de fato.
Há informações no processo de que o controlador teria se retirado de
uma das sociedades, transferindo suas cotas sociais para suas filhas.
Contudo, permanecera na condução da referida empresa, visto que, no
mesmo ato, as novas sócias o nomearam seu procurador para
“representá-las em todos os assuntos relativos à sociedade.
Em seu voto, o relator, ministro Villas Bôas Cueva, defendeu que a
condição “oficial” do agente responsável pelo abuso fraudulento da
personalidade jurídica não influencia, de forma alguma, a aferição da
necessidade da desconsideração inversa (
REsp 1.493.071).
Ele ressaltou que a medida deve ser adotada apenas em hipóteses
extremas, quando o intuito for resguardar os interesses dos credores das
tentativas de esvaziamento do acervo patrimonial do devedor por
simulação.
Razão de ser
Para a ministra Nancy Andrighi, assim como na desconsideração da
personalidade jurídica propriamente dita, a aplicação de sua forma
inversa tem a mesma razão de ser: combater a utilização indevida do ente
societário por seus sócios.
Ela observou que, independentemente da interpretação teleológica do
artigo 50 do CC, a aplicação da teoria em sua modalidade inversa
encontra justificativa nos princípios éticos e jurídicos intrínsecos à
própria disregard doctrine, que vedam o abuso de direito e a fraude contra credores.
Em julgamento de recurso especial, a ministra fez uma reflexão sobre a
necessidade de cautela por parte do juiz para aplicação da teoria,
sobretudo no sentido inverso (
REsp 948.117).
Fim social
Segundo ela, a distinção entre a responsabilidade da sociedade e a de
seus integrantes serve para estimular a criação de novas empresas e
para preservar a própria pessoa jurídica e o seu fim social. Contudo, se
a empresa fosse responsabilizada sem critério por dívidas de qualquer
sócio, “seria fadada ao insucesso”.
Com base nesse argumento, ela sustentou que somente em situações
excepcionais, em que o sócio controlador se vale da pessoa jurídica para
ocultar bens pessoais em prejuízo de terceiros, é que se deve admitir a
desconsideração inversa.
Em outras palavras, o juiz só está autorizado a “levantar o véu” da
personalidade jurídica quando forem atendidos os pressupostos
específicos relacionados com a fraude ou o abuso de direito
estabelecidos no artigo 50 do CC.
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