quarta-feira, 15 de junho de 2022

Sexta Turma DO STJ dá salvo-conduto para pacientes cultivarem Cannabis com fim medicinal

Sexta Turma do STJ dá salvo-conduto para pacientes cultivarem Cannabis com fim medicinal


Por unanimidade, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) concedeu salvo-conduto para garantir a três pessoas que possam cultivar Cannabis sativa (maconha) com a finalidade de extrair óleo medicinal para uso próprio, sem o risco de sofrerem qualquer repressão por parte da polícia e do Judiciário.

Ao julgar dois recursos sobre o tema, um de relatoria do ministro Rogerio Schietti Cruz (em segredo de Justiça) e o outro do ministro Sebastião Reis Júnior, o colegiado concluiu que a produção artesanal do óleo com fins terapêuticos não representa risco de lesão à saúde pública ou a qualquer outro bem jurídico protegido pela legislação antidrogas.

Os casos julgados pela turma dizem respeito a três pessoas que já usam o canabidiol – uma para transtorno de ansiedade e insônia; outra para sequelas do tratamento de câncer, e outra para insônia, ansiedade generalizada e outras enfermidades – e têm autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para importar a substância. No entanto, elas alegaram dificuldade para continuar o tratamento, em razão do alto custo da importação.

Segundo o ministro Schietti, uma vez que a produção artesanal do óleo da Cannabis sativa se destina a fins exclusivamente terapêuticos, com base em receituário e laudo assinado por médico e chancelado pela Anvisa ao autorizar a importação, "não há dúvidas de que deve ser obstada a repressão criminal" sobre a conduta dessas pessoas.

Para o ministro Sebastião Reis Júnior, as normas penais relativas às drogas procuram tutelar a saúde da coletividade, mas esse risco não se verifica quando a medicina prescreve as plantas psicotrópicas para o tratamento de doenças.
Laudo médico dispensa realização de perícia


Em um dos casos, o Ministério Público Federal recorreu ao STJ após o Tribunal Regional Federal da 3ª Região dar provimento a recurso e conceder habeas corpus preventivo para permitir o plantio da maconha e a produção artesanal do óleo. O órgão de acusação alegou, entre outros pontos, que o habeas corpus não seria a via processual adequada para esse tipo de pedido, pois a falta de regulamentação de tais atividades seria uma questão eminentemente administrativa.

No recurso, o Ministério Público argumentou que o pedido dos pacientes exigiria a produção de provas – que é vedada em habeas corpus –, inclusive a realização de perícia médica.

Segundo Schietti, a necessidade de produção de provas foi afastada no caso, tendo em vista que os pacientes apresentaram provas pré-constituídas de suas alegações, as quais foram consideradas suficientes pelo tribunal de segunda instância – como o fato de que estavam autorizados anteriormente pela Anvisa para importar medicamento com base em extrato de canabidiol para tratar doenças comprovadas por laudos médicos.

Em acréscimo, o ministro lembrou que, no julgamento do Tema 106 dos recursos repetitivos, o STJ decidiu que o fornecimento de medicamentos por parte do poder público pode ser determinado com base em laudo subscrito pelo próprio médico que assiste o paciente, sem necessidade de perícia oficial.
Omissão para regulamentar uso da Cannabis para fins medicinais

Schietti destacou que, embora a legislação brasileira possibilite, há mais de 40 anos, que as autoridades competentes autorizem a cultura de Cannabis exclusivamente para fins medicinais ou científicos, a matéria ainda não tem regulamentação específica.

Para o magistrado, a omissão dos órgãos públicos "torna praticamente inviável o tratamento médico prescrito aos pacientes, haja vista o alto custo da importação, a irregularidade no fornecimento do óleo nacional e a impossibilidade de produção artesanal dos medicamentos prescritos".

O ministro Sebastião Reis Júnior acrescentou que essa omissão regulamentar cria uma segregação entre os doentes que podem custear o tratamento, importando os medicamentos à base de canabidiol, e os que não podem.

"A previsão legal acerca da possibilidade de regulamentação do plantio para fins medicinais, entre outros, permite concluir tratamento legal díspar acerca do tema: enquanto o uso recreativo estabelece relação de tipicidade com a norma legal incriminadora, o uso medicinal, científico, ou mesmo ritualístico-religioso não desafia persecução penal dentro dos limites regulamentares", declarou.
Conduta não é penalmente típica

Rogerio Schietti analisou que a conduta para a qual se pediu o salvo-conduto não é penalmente típica, "seja por não estar imbuída do necessário dolo de preparar substâncias entorpecentes com as plantas cultivadas (nem para consumo pessoal nem para entrega a terceiros), seja por não vulnerar, sequer de forma potencial, o bem jurídico tutelado pelas normas incriminadoras da Lei de Drogas (saúde pública)".

Ao invés de atentar contra a saúde pública, afirmou o ministro, na verdade, a intenção desse cultivo é promovê-la, a partir da extração de produtos medicamentosos.

"Ainda que o plantio de Cannabis para fins medicinais (e a prévia importação de sementes) possa se adequar formalmente aos tipos penais previstos nos artigos 28, parágrafo 1º, e 33, parágrafo 1º, II, da Lei de Drogas, ou mesmo no artigo 334-A do Código Penal (contrabando) – o que justifica o cabimento de habeas corpus, diante do risco potencial de responsabilização criminal dos pacientes –, não há, sob os aspectos subjetivo e material, tipicidade na conduta, tanto por falta de dolo quanto à extração de substâncias entorpecentes a partir da referida planta, como por absoluta falta de lesividade à saúde pública ou a qualquer outro bem jurídico protegido em nosso ordenamento jurídico", concluiu.

Em complemento, Sebastião Reis Júnior ponderou que a tipificação penal do cultivo de planta psicotrópica está relacionada à sua finalidade. "A norma penal incriminadora mira o uso recreativo, a destinação para terceiros e o lucro, visto que, nesse caso, coloca-se em risco a saúde pública. A relação de tipicidade não vai encontrar guarida na conduta de cultivar planta psicotrópica para extração de canabidiol para uso próprio, visto que a finalidade aqui é a realização do direito à saúde, conforme prescrito pela medicina".

Esta notícia refere-se ao(s) processo(s):

Disponível em: <https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/14062022-Sexta-Turma-da-salvo-conduto-para-pacientes-cultivarem-Cannabis-com-fim-medicinal.aspx>. Aceso em 15.6.22


terça-feira, 7 de junho de 2022

Morre um direito, nasce outro: os institutos da supressio e da surrectio na interpretação do STJ - Deveres parcelares da Boa-fé Objetiva

Morre um direito, nasce outro: os institutos da supressio e da surrectio na interpretação do STJ

Relacionados à prolongada omissão no exercício de um direito, os institutos da supressio e da surrectio podem ser definidos como duas faces da mesma moeda: ao mesmo tempo em que, após o decurso de prazo extenso, uma pessoa perde determinado direito por não exercê-lo (supressio), surge o direito correspondente, pelo exercício reiterado, para a outra parte (surrectio).  

Como disse o ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Luis Felipe Salomão no julgamento do REsp 1.338.432, em 2017, na Quarta Turma, "a supressio inibe o exercício de um direito, até então reconhecido, pelo seu não exercício. Por outro lado, e em direção oposta à supressio, mas com ela intimamente ligada, tem-se a teoria da surrectio, cujo desdobramento é a aquisição de um direito pelo decurso do tempo, pela expectativa legitimamente despertada por ação ou comportamento". 

Para a professora e advogada Judith Martins-Costa, citada pelo ministro, a supressio "indica o encobrimento de uma pretensão, coibindo-se o exercício do direito em razão do seu não exercício, por determinado período de tempo, com a consequente criação da legítima expectativa, à contraparte, de que o mesmo não seria utilizado".

Distribuidora ficou seis anos sem exigir obrigação contratual

No caso analisado pela Quarta Turma em 2017, uma distribuidora de combustível ajuizou ação contra um posto para cobrar multa em razão do descumprimento do contrato pactuado quase seis anos antes. Segundo alegou, ela fez os investimentos acordados, mas o posto não teria cumprido a obrigação de comprar, com exclusividade, quantidades mínimas mensais de derivados de petróleo e de álcool hidratado.

De acordo com Salomão, relator, o longo transcurso de tempo, sem a cobrança da obrigação de compra de quantidades mínimas mensais de combustível, suprimiu, de um lado, a faculdade jurídica da distribuidora (promitente vendedora) de exigir a prestação; de outro, criou uma situação de vantagem para o posto varejista (promissário comprador), cujo inadimplemento não poderá implicar a incidência da cláusula penal compensatória contratada.

"A inércia da autora em exigir o adimplemento da obrigação pactuada, somada ao longo decurso do tempo (quase seis anos), configura, a meu ver, as figuras da supressio e da surrectio" – afirmou o ministro ao julgar improcedente o pedido de cobrança da distribuidora.

Inércia do locador dispensa loja dos reajustes retroativos, mas não dos futuros

Em 2019, no julgamento do REsp 1.803.278, a Terceira Turma aplicou o instituto da supressio ao caso de uma empresa, locadora de imóvel para uma loja, que pretendia exigir os valores correspondentes a reajustes que ela não cobrou durante cinco anos de aluguel. A locatária sustentou que a inércia da locadora levou à incidência do instituto, tanto em relação aos retroativos quanto em relação aos valores posteriores à notificação extrajudicial, mas essa segunda parte de sua tese não foi aceita pelo STJ. ​​​​​​​​​​​​

O relator do recurso, ministro Villas Bôas Cueva, destacou que, para a configuração da supressio, são necessários três requisitos: a) inércia do titular do direito subjetivo; b) decurso de tempo capaz de gerar a expectativa de que esse direito não mais seria exercido; e c) deslealdade em decorrência de seu exercício posterior, com reflexos no equilíbrio da relação contratual.

Na avaliação do magistrado, a empresa locadora não gerou no locatário a expectativa de que não haveria a atualização do valor do aluguel durante todo o período de 20 anos do contrato, mas deixou de cobrar os reajustes ao longo dos cinco anos iniciais, o que apenas sugeriria que o valor correspondente a esse período não seria mais cobrado.

Para o relator, não é razoável supor que a locatária tivesse criado a expectativa de que a locadora não fosse mais exigir o reajuste dos aluguéis. "Assim, o decurso do tempo não foi capaz de gerar a confiança de que o direito não seria mais exercitado em momento algum do contrato de locação", afirmou Villas Bôas Cueva.

Aplicação da supressio em direitos autorais

No julgamento do REsp 1.643.203, a Terceira Turma aplicou o instituto da supressio para negar indenização de direitos autorais após mais de 40 anos de utilização da obra sem cobrança. Os ministros negaram o pedido de um compositor para que a Rádio Globo e a Globo Comunicação e Participações fossem condenadas a pagar indenização pelo uso de vinhetas como "Rádio Globooo" e "Fluminenseee", criadas por ele em 1969 e veiculadas permanentemente na programação da emissora desde então.

Para o ministro Marco Aurélio Bellizze, relator, o fato de os direitos autorais serem vitalícios não é suficiente para afastar a incidência da supressio, "impondo-se, contudo, uma análise da boa-fé objetiva compatível com os fundamentos essenciais e principiológicos dos direitos autorais".

Segundo o ministro, as vinhetas foram usadas como marca sonora da Rádio Globo desde a sua criação, com conhecimento e consentimento do autor. Essa relação amistosa de utilização da obra protegida, disse, gerou na emissora a expectativa legítima de que poderia aproveitar os jingles na programação – até que, décadas depois, o compositor modificasse sua postura de forma abrupta.

"O que se verifica é que a parte utente agiu sempre de forma condizente com a boa-fé objetiva; seus atos externados e indicados pelo próprio recorrente evidenciam que ela acreditava utilizar a obra de forma gratuita, lícita e contratualmente consentida, tanto que reiteradamente reconhecia a autoria das vinhetas publicamente", concluiu o ministro.

Supressio é uma forma de responsabilidade pela confiança

Por verificar a caracterização da supressio, a Terceira Turma, no julgamento do  REsp 1.879.503, manteve um ex-empregado – desligado há mais de dez anos – e sua esposa em plano de saúde originalmente contratado pela empresa em que ele trabalhava. Embora seja de dois anos o tempo máximo de permanência do empregado demitido no plano coletivo – como previsto no artigo 30, parágrafo 1º, da Lei 9.656/1998 –, o ex-empregador manteve a assistência para o casal por mais de uma década, tendo os beneficiários assumido o pagamento integral das contribuições.

Para o colegiado, o longo tempo de permanência no plano despertou nos beneficiários a confiança de que não perderiam a assistência à saúde, de modo que a sua exclusão, passada uma década do desligamento profissional e quando eles já estavam em idade avançada, violou o princípio da boa-fé objetiva.

A relatora, ministra Nancy Andrighi, explicou que, segundo o princípio da responsabilidade pela confiança – uma das vertentes da boa-fé objetiva –, aquele que origina a confiança de alguém deve responder, em certas circunstâncias, pelos danos causados.

A magistrada citou como exemplo de responsabilidade pela confiança a supressio – entendida como um "não exercício abusivo do direito"–, a qual indica a possibilidade de se considerar suprimida determinada obrigação contratual na hipótese em que o credor, por não a exigir, fizer surgir no devedor a legítima expectativa de que essa supressão se prorrogará no tempo. ​​​​​​​​​​​​

Pagamento espontâneo de pensão alimentícia não configura surrectio

Contudo, em julgado de 2019 (sob segredo de Justiça), a Terceira Turma firmou o entendimento de que a obrigação alimentar extinta, mas que continua a ser paga por mera liberalidade do alimentante, não pode ser mantida com fundamento no instituto da surrectio.

No caso em análise, as partes firmaram em 2001 acordo pelo qual o ex-marido se comprometeu a pagar plano de saúde e pensão alimentícia à ex-mulher pelo período de 24 meses. Expirado o prazo – e negado judicialmente o pedido para que a pensão fosse prorrogada por mais 24 meses –, o ex-marido, por conta própria, continuou arcando com a verba alimentícia por cerca de 15 anos. Em 2017, ele decidiu suspender o pagamento.

A ex-mulher ajuizou ação contra o corte, a qual foi acolhida pelo tribunal de segunda instância, que entendeu que o ex-marido teria criado uma expectativa de direito digna de proteção jurídica, em virtude da surrectio.

No voto acompanhado pela maioria da Terceira Turma, o ministro Villas Bôas Cueva afirmou que o ex-marido, por espontânea vontade, cooperou com a ex-mulher pelo período desejado, sem a existência de uma obrigação legal. Para o ministro, não houve ilicitude na suspensão do pagamento da pensão, já que não havia mais relação obrigacional entre as partes.

"A boa intenção do recorrente perante a ex-mulher não pode ser interpretada a seu desfavor. Há que prevalecer a autonomia da vontade ante a espontânea solidariedade em análise, cujos motivos são de ordem pessoal e íntima, e, portanto, refogem do papel do Judiciário, que deve se imiscuir sempre com cautela, intervindo o mínimo possível na seara familiar. Assim, ausente o mencionado exercício anormal ou irregular de direito", declarou.

Na sua avaliação, não houve ilicitude na conduta do ex-marido, por inexistir previsão de pagamento eterno dos alimentos e, especialmente, porque ausente a relação obrigacional.

Redução da jornada de trabalho de servidor público não se consolida no tempo

Em 2020, a Segunda Turma negou provimento ao RMS 62.942, no qual um sindicato de Mato Grosso do Sul pedia a aplicação dos institutos da surrectio e da supressio contra o decreto do governador que alterou a jornada de trabalho dos servidores estaduais. A norma determinou o retorno das oito horas diárias, após mais de 15 anos de jornada de seis horas.

Segundo o sindicato, surgiu para a categoria o direito à jornada reduzida de 30 horas semanais, por conta do prazo transcorrido desde o decreto que instituiu a redução temporária – por aplicação da surrectio –, ao mesmo tempo em que a administração perdeu o direito de implementar alterações no regime jurídico no que diz respeito à redução da jornada – aplicação da supressio.

Na avaliação do relator, ministro Francisco Falcão, no entanto, os dois institutos não podem ser invocados para consolidar uma situação temporária de redução de jornada, fazendo surgir o suposto direito a um cargo com contornos diversos daquele para o qual o servidor prestou concurso público. Para o ministro, não se pode "legitimar a perda do direito da administração de rever os seus próprios atos, mormente quando se trata de mero retorno às características do cargo público previsto em lei".

Esta notícia refere-se ao(s) processo(s):

REsp 1338432REsp 1803278REsp 1643203REsp 1879503RMS 62942

Disponível em: <https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/05062022-Morre-um-direito--nasce-outro-os-institutos-da-supressio-e-da-surrectio-na-interpretacao-do-STJ.aspx>. Acesso em 7.6.22








 

STJ - Em execução civil, juízo pode inscrever devedor na Central Nacional de Indisponibilidade de Bens

Em execução civil, juízo pode inscrever devedor na Central Nacional de Indisponibilidade de Bens A Terceira Turma do Superior Tribunal de Ju...