segunda-feira, 29 de agosto de 2022

STJ: Asilo inviolável, mas nem sempre: o STJ e o ingresso policial em domicílio

Asilo inviolável, mas nem sempre: o STJ e o ingresso policial em domicílio

A entrada de forças policiais na residência do investigado é, provavelmente, um dos momentos de maior tensão entre o interesse público – nesse caso, a pretensão do Estado de manter a ordem, investigar e punir ilícitos – e as garantias individuais, como a intimidade, a privacidade e a inviolabilidade do domicílio.  

Quando o ingresso policial é amparado em mandado judicial – apesar de também haver momentânea mitigação do princípio da inviolabilidade domiciliar –, há menos discussão nos tribunais e na esfera doutrinária sobre eventual ilegalidade; a controvérsia principal se dá nas situações em que a entrada dos agentes não é precedida de autorização judicial, como em situações de alegado flagrante.  

No caso do ingresso sem mandado, são comuns os pedidos de anulação das provas obtidas na diligência em virtude de aspectos como a falta de consentimento do morador ou a inexistência da comprovação de investigações prévias que embasassem a ação policial.  

Afinal, quais são os critérios para o ingresso da polícia em uma residência? Em meio a esse debate, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem corrigido ilegalidades e fixado parâmetros para evitar que elas ocorram.

Ordem genérica contra moradores de comunidades pobres

Em 2019, a Sexta Turma do STJ, no julgamento de habeas corpus impetrado pela Defensoria Pública, anulou uma autorização judicial para busca e apreensão coletiva em residências de comunidades pobres do Rio de Janeiro. O colegiado considerou que a ordem, genérica e indiscriminada, não identificava os nomes de investigados nem os endereços específicos que deveriam ser objeto da diligência policial.

Segundo a Defensoria, a medida foi tomada em 2017 após a morte de um policial, para que os agentes tentassem encontrar armas, documentos, celulares e outras provas contra facções criminosas.

O relator do HC 435.934, ministro Sebastião Reis Júnior, afirmou que "não é possível a concessão de ordem indiscriminada de busca e apreensão para a entrada da polícia em qualquer residência. A carta branca à polícia é inadmissível, devendo-se respeitar os direitos individuais. A suspeita de que na comunidade existam criminosos e que crimes estejam sendo praticados diariamente, por si só, não autoriza que toda e qualquer residência do local seja objeto de busca e apreensão".

Leia também: Sexta Turma considera ilegal busca e apreensão coletiva em comunidades pobres do Rio

De acordo com o ministro, o mandado de busca e apreensão deve ter objetivo certo e pessoa determinada. A falta de individualização das medidas contrariou vários dispositivos legais, inclusive o artigo 5°, XI, da Constituição Federal, que traz como direito fundamental a inviolabilidade do domicílio.

Busca e apreensão em apartamento desabitado sem autorização judicial 

A Quinta Turma, no HC 588.445, entendeu não haver nulidade na busca feita por policiais, sem mandado judicial, em apartamento que não revelava sinais de habitação e sobre o qual havia fundada suspeita de servir para a prática de crime permanente.

Segundo o ministro Reynaldo Soares da Fonseca, relator, a proteção constitucional da casa, independentemente de seu formato e sua localização, de se tratar de bem móvel ou imóvel, pressupõe que o indivíduo a utilize para fins de habitação – ainda que de forma transitória, pois o bem jurídico tutelado é a intimidade da vida privada.

No caso, o ministro verificou que houve uma denúncia anônima sobre armazenamento de drogas e de armas, e também informações dos vizinhos de que não haveria residentes no imóvel. Segundo os autos, a polícia teria feito uma vistoria externa, na qual não foram identificados indícios de ocupação por moradores, mas foi visualizada parte do material ilícito. Quando a força policial entrou no local, encontrou grande quantidade de drogas.

Segundo o magistrado, o crime de tráfico de drogas, na modalidade de guardar ou ter entorpecentes em depósito, possui natureza permanente. "Tal fato torna legítima a entrada de policiais em domicílio para fazer cessar a prática do delito, independentemente de mandado judicial, desde que existam elementos suficientes de probabilidade delitiva capazes de demonstrar a ocorrência de situação flagrancial", afirmou.

Ingresso em residência sem mandado e sem indícios suficientes de crime

Em 2017, a Sexta Turma negou provimento ao REsp 1.574.681, interposto pelo Ministério Público do Rio Grande do Sul, e manteve a absolvição de um homem acusado de tráfico de drogas, ao reconhecer a ilicitude da prova colhida em busca realizada no interior de sua residência sem autorização judicial.

De acordo com o processo, o denunciado, ao avistar policiais militares em patrulhamento de rotina em local conhecido como ponto de venda de drogas, correu para dentro da casa, onde foi abordado.

Após buscas na residência, os policiais encontraram 18 pedras de crack. Pelo crime previsto no artigo 33 da Lei 11.343/2006, o morador foi condenado, em primeira instância, à pena de quatro anos e dois meses de reclusão, em regime inicial semiaberto. O Tribunal de Justiça, no entanto, absolveu o acusado por considerar ilícita a violação domiciliar.

Para o relator do recurso da acusação, ministro Rogerio Schietti Cruz, o contexto fático anterior à invasão não permitia a conclusão da ocorrência de crime no interior da residência que justificasse o ingresso dos agentes.

De acordo com o ministro, os policiais até poderiam ter abordado o suspeito em via pública para averiguação, mas a simples intuição quando à prática de tráfico não configura, por si só, justa causa capaz de autorizar o ingresso em domicílio sem o consentimento do morador – que deve ser mínima e seguramente comprovado – e sem determinação judicial.

O relator reconheceu que o combate ao crime organizado exige uma postura mais enérgica por parte das autoridades, mas afirmou que a coletividade, "sobretudo a integrada por segmentos das camadas sociais mais precárias economicamente", precisa ver preservados "seus mínimos direitos e suas garantias constitucionais".

Dúvida sobre autorização do morador para entrada na casa

No julgamento do HC 674.139, em fevereiro deste ano, a Sexta Turma estabeleceu que, em caso de dúvidas entre a versão da polícia – que diz ter sido autorizada a ingressar na residência – e a do morador – que diz ter sido induzido em erro pelos agentes –, deve prevalecer esta última. Com esse entendimento, o colegiado reconheceu a ilegalidade das provas supostamente colhidas em uma diligência e concedeu habeas corpus para absolver um acusado por tráfico de drogas.

O morador relatou que os policiais afirmaram estar procurando um assaltante e lhe pediram para abrir o portão. Segundo ele, após atender ao pedido, os policiais passaram a procurar drogas, mas – afirmou – não teriam encontrado nada. Por outro lado, os policiais narraram que, após denúncia recebida pela central, foram ao local e viram o réu saindo de motociclo com um revólver. Ao ser informado da denúncia, ele teria admitido haver drogas em casa e autorizado a entrada dos agentes, que encontraram tabletes de maconha e porções de cocaína.

O relator do habeas corpus, ministro Rogerio Schietti, recordou que a inviolabilidade de domicílio é direito fundamental previsto constitucionalmente e que a sua violação não pode ser legitimada pela simples constatação de situação de flagrância posterior ao ingresso não autorizado.

Ele destacou que o Supremo Tribunal Federal (STF), ao julgar o RE 603.616, com repercussão geral, decidiu que o ingresso forçado em domicílio sem mandado só é lícito quando amparado em fundadas razões, com lastro em circunstâncias objetivas que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente e de nulidade das provas obtidas.

"Caberia aos agentes que atuam em nome do Estado demonstrar, de modo inequívoco, que o consentimento do morador foi livremente prestado, ou que havia em curso na residência uma clara situação de comércio espúrio de droga, a autorizar o ingresso domiciliar mesmo sem consentimento válido do morador. Entretanto, não se demonstrou preocupação em documentar esse consentimento, quer por escrito, quer por testemunhas, quer, ainda e especialmente, por registro de áudio-vídeo", afirmou o magistrado.

Teoria da aparência e a autorização de ingresso em residência

No entanto, havendo a autorização de parente hospedado em domicílio particular, é legítima a entrada de policiais no local sem mandado judicial.

Com esse entendimento, a Quinta Turma, no julgamento do RHC 141.544, manteve uma ação penal contra mãe e filho suspeitos de tráfico de drogas. A investigação partiu de denúncia anônima sobre o plantio de maconha em propriedade rural localizada em São José dos Pinhais (PR). A revista foi autorizada por uma mulher que estava na casa e se identificou como nora da dona da chácara. Os policiais encontraram no local 155 pés de maconha, 780g de sementes e utensílios utilizados na estufa para o cultivo da planta.

Para o relator, ministro Reynaldo Soares da Fonseca, mesmo a autorização tendo sido dada por pessoa não residente no imóvel – no caso, uma hóspede não eventual –, essa situação não é capaz, por si só, de tornar ilícita a ação policial. Para o ministro, deve-se aplicar ao caso a teoria da aparência, pois quem autorizou o ingresso dos agentes foi a ex-companheira do filho da proprietária, que se referiu a ela como "sogra".

O ministro explicou também que, por ser crime permanente, quem guarda drogas em casa está em situação de flagrante. "Legítima, portanto, a entrada de policiais para fazer cessar a prática do delito, independentemente de mandado judicial, desde que existam elementos suficientes de probabilidade delitiva", afirmou.

Desvio de finalidade após a invasão do domicílio

Por se tratar de medida invasiva e que restringe o direito fundamental à intimidade, o ingresso em morada alheia deve se limitar ao estritamente necessário para cumprir a sua finalidade, conforme estabelece o artigo 248 do Código de Processo Penal (CPP), segundo o qual, "em casa habitada, a busca será feita de modo que não moleste os moradores mais do que o indispensável para o êxito da diligência".

No julgamento do HC 663.055, a Sexta Turma considerou ilícitas as provas colhidas em uma caixa no interior de residência (drogas e uma munição calibre .32), uma vez que os policiais ali entraram sem ordem judicial e sem haver uma situação que justificasse a invasão.

De acordo com o processo, o morador foi abordado na rua pela polícia e, tentando esconder o fato de já ter registro de envolvimento com drogas, identificou-se com dados de seu irmão, sem saber que contra este havia um mandado de prisão em aberto. Ao ser informado da existência do mandado, o morador conseguiu fugir. Enquanto uma equipe policial o procurava, outra foi à sua casa, onde procedeu a uma minuciosa revista.

Para o relator no STJ, ministro Rogerio Schietti, nenhuma circunstância do caso justificava o ingresso dos policiais na residência sem autorização judicial – nem o crime de falsa identidade, pois os agentes ainda não sabiam que o suspeito havia mentido; nem o mandado de prisão, pois não foi respeitado o artigo 293 do CPP, e a polícia nem mesmo sabia se o fugitivo estava ou não ali.

Além disso, o ministro observou que, mesmo se admitida a possibilidade de ingresso no domicílio para cumprimento do mandado de prisão ou até por flagrante do crime de falsa identidade, houve desvirtuamento da finalidade do ato, porque as drogas e a munição foram apreendidas em uma caixa de papelão que estava no chão de um dos quartos – evidência de que não houve mero encontro fortuito enquanto se procurava pelo fugitivo.

"Admitir a entrada na residência especificamente para efetuar uma prisão não significa conceder um salvo-conduto para que todo o seu interior seja vasculhado indistintamente, em verdadeira pescaria probatória (fishing expedition), sob pena de nulidade das provas colhidas por desvio de finalidade", disse o magistrado.

Esta notícia refere-se ao(s) processo(s):HC 435934HC 588445REsp 1574681HC 674139RHC 141544HC 663055

Disponível em: <https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/28082022-Asilo-inviolavel--mas-nem-sempre-o-STJ-e-o-ingresso-policial-em-domicilio.aspx>. Acesso em 29.08.2022 


domingo, 7 de agosto de 2022

Responder a inquérito policial não é motivo suficiente para desclassificação em concurso público

Responder a inquérito policial não é motivo suficiente para desclassificação em concurso público

A Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), por unanimidade, entendeu que o fato de o candidato responder a inquérito policial, por si só, não o desqualifica para o ingresso em cargo público.

A decisão teve como base a tese firmada em repercussão geral pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no RE 560.900, na qual ficou definido que, "sem previsão constitucional adequada e instituída por lei, não é legítima a cláusula de edital de concurso público que restrinja a participação de candidato pelo simples fato de responder a inquérito ou ação penal".

Princípio da presunção de inocência versus previsão editalícia

Segundo o processo, o candidato foi eliminado na fase de investigação social no concurso para o cargo de agente de segurança penitenciário, por responder a inquérito policial pela suposta prática de estelionato. De acordo com a acusação, em ação comandada por um vizinho, ele teria se passado por funcionário de uma empresa para receber mercadoria destinada a ela.

O Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) considerou que não houve ilegalidade na eliminação, pois o edital previa a contraindicação dos candidatos que não apresentassem idoneidade e conduta ilibada, sendo que, no caso em discussão, chegou a haver prisão em flagrante.

Ao STJ, o candidato sustentou que a banca examinadora, ao eliminá-lo, violou o princípio da presunção de inocência. Por sua vez, o Estado de Minas Gerais alegou que a exclusão se deu em obediência às normas regulamentadoras do concurso, que devem prevalecer entre as partes, porque foram estabelecidas pela administração pública e admitidas pelos participantes do certame. Asseverou, ainda, ser a conduta do candidato incompatível com o cargo pretendido.

Não estão presentes as situações excepcionais previstas no precedente do STF

Relator do recurso no STJ, o ministro Gurgel de Faria destacou que, de fato, o STF, ao decidir de forma vinculativa no RE 560.900, ressalvou que a lei pode instituir requisitos mais rigorosos para determinados cargos, em razão da relevância das atribuições envolvidas, como é o caso das carreiras da magistratura, das funções essenciais à Justiça e da segurança pública.

Porém, lembrou que aquela corte vedou, em qualquer caso, a valoração negativa de simples processo em andamento, salvo situações excepcionalíssimas e de indiscutível gravidade – o que não ocorreu na situação analisada, visto que o candidato respondia a um único inquérito policial e a administração nem apresentou informações sobre seu eventual desfecho.

"Ainda que absolutamente reprovável a conduta imputada ao recorrente, inexiste o cenário de exceção reservado pelo precedente do Supremo a situações completamente desfavoráveis ao candidato. Entender de modo contrário implica o risco de a exceção se tornar a regra, desvirtuando a razão do precedente e provocando insegurança jurídica", concluiu Gurgel de Faria.

O magistrado também ponderou que, segundo se infere do processo, os fatos chegaram ao conhecimento da banca examinadora pelo próprio candidato, que não omitiu a situação. 

Leia o acordão do RMS 51.675. 

Esta notícia refere-se ao(s) processo(s):RMS 51675

Disponível em: <https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/05082022-Responder-a-inquerito-policial-nao-e-motivo-suficiente-para-desclassificacao-em-concurso-publico-.aspx>. Acesso em 07.08.2022


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