sábado, 12 de novembro de 2022

STJ - Violência doméstica: 15 interpretações que reforçaram a proteção da mulher em 15 anos da Lei Maria da Penha

Violência doméstica: 15 interpretações que reforçaram a proteção da mulher em 15 anos da Lei Maria da Penha

STJ 08.08.2021

Criada para prevenir e combater a violência doméstica e familiar, garantir punição com mais rigor aos agressores e proteger a mulher agredida, a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) completou 15 anos nesse sábado, 7 de agosto.

A lei cumpre determinações estabelecidas pela Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, da Organização dos Estados Americanos (OEA), aprovada em Belém em 1994 e promulgada pelo Brasil em 1996, por meio do Decreto 1.973.

O nome da lei é uma homenagem à farmacêutica Maria da Penha Maia, que ficou paraplégica depois de levar um tiro disparado pelo próprio marido, em 1983.

Ao alterar a redação da alínea f do inciso II do artigo 61 do Código Penal, o novo diploma legal possibilitou que agressores de mulheres no âmbito doméstico e familiar sejam presos em flagrante ou tenham a prisão preventiva decretada.

A lei também aumentou o tempo máximo de detenção no caso de lesão corporal leve em contexto familiar e doméstico, de um para três anos, estabelecendo ainda medidas como a saída do agressor do domicílio e a proibição de que se aproxime da mulher agredida e dos filhos.

Maior proteção jurídica p​​​ara as mulheres

Para o ministro Rogerio Schietti Cruz, a evolução legislativa ocorrida na última década evidencia uma tendência, também verificada em âmbito internacional, à valorização e ao fortalecimento da vítima, particularmente a mulher, no processo criminal.

Segundo o ministro, é papel das instituições que defendem a liberdade humana e o Estado Democrático de Direito criar mecanismos para fortalecer a mulher, "vencendo a timidez hermenêutica" na reprovação à violência doméstica e familiar. "O padrão sistemático de omissão e negligência em relação à violência doméstica e familiar contra as mulheres brasileiras vem sendo pouco a pouco derrubado", acrescentou.

Na comemoração dos 15 anos da Lei Maria da Penha, esta reportagem especial apresenta 15 interpretações do Tribunal da Cidadania que têm ajudado o Poder Judiciário a derrubar o padrão de omissão e negligência a que o ministro se refere.

Embora os índices de violência ainda sejam alarmantes – a cada ano, cerca de 1,3 milhão de mulheres são agredidas no Brasil, segundo dados do suplemento de vitimização da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) referente a 2009 –, por meio dos julgados do STJ é possível perceber que as mulheres estão, cada dia mais, abrindo a porta de suas casas para a entrada da Justiça.

1 – Suspensão do processo e tra​​nsação penal

Em um passo importante nessa evolução jurisprudencial, o STJ editou, em 2015, a Súmul​a 536, na qual estabeleceu que a suspensão condicional do processo e a transação penal não se aplicam na hipótese de delitos sujeitos ao rito da Maria da Penha, sendo proibida a concessão de benefícios da Lei 9.099/1995 – Lei dos Juizados Especiais.

No HC 196.253, a defesa de um homem condenado por agredir sua companheira solicitou a suspensão do processo por considerar que o artigo 41 da Lei Maria da Penha não vedaria a concessão do benefício quando se tratasse de contravenção penal.

Ao negar o pedido, o relator, ministro Og Fernandes, afirmou que, "alinhando-se à orientação jurisprudencial concebida no seio do Supremo Tribunal Federal, a Terceira Seção deste Superior Tribunal de Justiça adotou o entendimento de serem inaplicáveis aos crimes e contravenções penais pautados pela Lei Maria da Penha os institutos despenalizadores previstos na Lei 9.099/1995, entre eles, a suspensão condicional do processo".

2 – Ação pública inco​ndicionada

No mesmo ano, o tribunal editou a Súmula 542, fixando que "a ação penal relativa ao crime de lesão corporal resultante de violência doméstica contra a mulher é pública incondicionada" – ou seja, a propositura da ação fica a cargo do Ministério Público e não depende de representação da vítima.

Além disso, em 2017, a Terceira Seção revisou entendimento adotado no rito dos recursos repetitivos (Tema 177) para ajustá-lo à jurisprudência do STF, estabelecendo que também nos crimes de lesão corporal leve cometidos contra a mulher, no âmbito doméstico e familiar, a ação é pública incondicionada (Pet 11.805).

De acordo com o ministro Rogerio Schietti Cruz, autor da proposta de revisão de tese, a alteração considerou os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia.

3 – Substituiçã​​o de pena

Outro passo significativo foi dado pelo tribunal, também em 2017, com a aprovação da Súmula 588, definindo que a prática de crime ou contravenção contra a mulher no ambiente doméstico, com violência ou grave ameaça, impossibilita a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos.

Segundo o ministro Ribeiro Dantas, relator do HC 590.301, nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, é vedada a aplicação de penas de cesta básica ou outras de prestação pecuniária, bem como a substituição de pena que implique o pagamento isolado de multa, conforme o artigo 17 da Lei Maria da Penha.

"A Lei Maria da Penha veda a aplicação de prestação pecuniária e a substituição da pena corporal por multa isoladamente. Por consequência, ainda que o crime pelo qual o réu tenha sido condenado tenha previsão alternativa de pena de multa, como na hipótese, não é cabível a aplicação exclusiva de tal reprimenda em caso de violência ou grave ameaça contra a mulher", afirmou.

4 – Princípio da in​​significância

Súmula 589 do STJ preceitua ser inaplicável o princípio da insignificância nos crimes ou nas contravenções penais praticados contra a mulher no âmbito das relações domésticas.

No julgamento do AgRg no REsp 1.743.996, o ministro Reynaldo Soares da Fonseca explicou que a jurisprudência do tribunal veda a aplicação do princípio da insignificância, mesmo que o casal tenha se reconciliado após o episódio de violência.

Segundo o ministro, "não incidem os princípios da insignificância e da bagatela imprópria aos crimes e às contravenções praticados mediante violência ou grave ameaça contra a mulher, no âmbito das relações domésticas, dada a relevância penal da conduta".

5 – Indenização por dano​​ moral

Nos casos de violência doméstica contra a mulher, "é possível a fixação de valor mínimo indenizatório a título de dano moral, desde que haja pedido expresso da acusação ou da parte ofendida, ainda que não indicada a quantia, e independentemente de instrução probatória específica".

Essa foi a tese fixada em 2018 pela Terceira Seção ao julgar recursos especiais repetitivos (Tema 983) que discutiam a possibilidade da reparação de natureza cível por meio de sentença condenatória nos casos de violência doméstica.

Leia t​​​ambém: O que é recurso repetitivo

O relator, Rogerio Schietti, destacou que a Lei Maria da Penha passou a permitir que o juízo criminal decida sobre reparações relacionadas à dor e à humilhação da vítima, as quais derivam da prática criminosa e possuem difícil mensuração e comprovação.

O que se tem de provar, segundo ele, é a própria imputação criminosa; uma vez demonstrada a agressão à mulher, "os danos psíquicos dela derivados são evidentes e nem têm mesmo como ser demonstrados".

6 – Desnecessidade de c​​​oabitação

Um dos questionamentos enfrentados pelo STJ foi sobre a necessidade de coabitação para a caracterização da violência tratada nos dispositivos da Lei Maria da Penha.

O tribunal decidiu então que a relação existente entre o sujeito ativo e o passivo deve ser analisada em face do caso concreto para verificar a aplicação da lei, sendo desnecessário que se configure a coabitação entre eles (HC 184.990). No caso analisado pela Sexta Turma, foi reconhecida a aplicação da Maria da Penha por existir relação íntima de afeto familiar entre os agressores e a vítima.

"A hipótese, portanto, se amolda àquele objeto de proteção da Lei 11.340/2006, já que caracterizada a relação íntima de afeto, em que os agressores, todos irmãos da vítima, conviveram com a ofendida, inexistindo a exigência de coabitação no tempo do crime para a configuração da violência doméstica contra a mulher", afirmou o ministro Og Fernandes. O entendimento está consolidado na Súmula 600.

7 – Fama​​ e vulnerabilidade

Nos casos de agressão em razão do gênero, o fato de a vítima ser figura pública renomada não afasta a competência do Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher para julgar o delito. A decisão foi tomada em 2014, pela Quinta Turma, ao analisar caso envolvendo uma atriz que levou um tapa no rosto do namorado em público.

Para a ministra Laurita Vaz, a condição de destaque da mulher no meio social, seja por situação profissional ou econômica, não afasta a incidência da Maria da Penha, nos casos em que ela for submetida a uma situação de violência decorrente de relação íntima afetiva.

"A situação de vulnerabilidade e fragilidade da mulher, envolvida em relacionamento íntimo de afeto, nas circunstâncias descritas pela lei de regência, se revela ipso facto. Com efeito, a presunção de hipossuficiência da mulher, a implicar a necessidade de o Estado oferecer proteção especial para reequilibrar a desproporcionalidade existente, constitui-se em pressuposto de validade da própria lei", destacou a ministra.

8 –​ Execução d​​​e alimentos

Para o STJ, cabe ao Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher julgar a execução de alimentos fixados a título de medida protetiva de urgência em favor de filho do casal em conflito.

A decisão foi tomada em processo envolvendo uma mulher agredida pelo marido. Ela procurou a vara especializada em violência doméstica, pleiteando medidas protetivas – entre elas, alimentos provisionais, que foram deferidos pela juíza.


Segundo o ministro Moura Ribeiro, mesmo que a regra geral atribua a questão dos alimentos às varas de família, cabe ao juizado especializado – quando procurado pela vítima de violência doméstica – apreciar o pedido e, se for o caso, fixar a verba alimentar.

Negar o julgamento pela vara especializada, postergando o recebimento dos alimentos arbitrados como urgentes, seria "afastar o espírito protetivo da lei", afirmou o ministro.

9 – Ameaça a partir do e​​xterior

Compete à Justiça Federal apreciar o pedido de medida protetiva de urgência decorrente de ameaça feita a partir do estrangeiro, por meio de redes sociais, contra mulher que vive no Brasil. 

Assim decidiu o STJ no julgamento do CC 150.712, em 2018, quando a Terceira Seção analisou um suposto caso de crime de ameaça cometido por morador dos Estados Unidos contra a ex-namorada.

Com base em entendimento anterior do STF, o colegiado concluiu que, embora as convenções sobre combate à violência de gênero firmadas pelo Brasil não tratem do crime de ameaça, a Lei Maria da Penha concretizou o dever assumido pelo país nesse campo. O relator, ministro Joel Ilan Paciornik, destacou que esses acordos internacionais asseguram os direitos das mulheres e estabelecem recomendações para a erradicação de qualquer forma de discriminação e violência contra elas.

10 – Vínculo trabalhista e ​​salário

Em 2019, a Sexta Turma decidiu que o afastamento do serviço por até seis meses, quando isso for necessário para preservar a integridade física e psicológica da mulher em situação de violência doméstica, deve ser remunerado.

Para o colegiado, esse afastamento – previsto no artigo 9º, parágrafo 2º, inciso II, da Lei Maria da Penha – tem natureza jurídica de interrupção do contrato de trabalho; assim, analogicamente, a mulher tem direito ao auxílio-doença, o que significa que o empregador deve se responsabilizar pelo pagamento dos 15 primeiros dias, ficando o restante do período a cargo do INSS.

Segundo o ministro Rogerio Schietti, a lei assegurou a manutenção do vínculo empregatício, sem nada estabelecer quanto à remuneração. "A vítima de violência doméstica não pode arcar com danos resultantes da imposição de medida protetiva em seu favor", afirmou o magistrado. Na falta de norma legal específica, ele concluiu que a solução mais razoável é a imposição, ao INSS, dos efeitos remuneratórios do afastamento do trabalho.

O entendimento fixado pela corte se mostra ainda mais relevante quando consideradas as informações do estudo Participação no Mercado de Trabalho e Violência Doméstica contra as Mulheres no Brasil, publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), segundo o qual a ocorrência de violência doméstica contra mulheres que integram a população economicamente ativa é praticamente o dobro daquela que se verifica entre as que não estão no mercado de trabalho.

11 – Neto da patroa cont​​ra empregada

Em fevereiro de 2021, a Sexta Turma confirmou decisão do ministro Sebastião Reis Júnior para restabelecer sentença que condenou um homem por atentado violento ao pudor (atual delito de estupro) praticado contra a empregada doméstica da casa de sua avó.

O tribunal estadual, na análise de revisão criminal, entendeu que a vara especializada em violência doméstica seria incompetente para julgar o caso, e anulou a sentença condenatória. Como o neto não morava na casa da avó, a corte entendeu que não seria aplicável a Lei Maria da Penha, que prevê a competência da vara especializada.

Entretanto, segundo o ministro Sebastião Reis Júnior, relator do caso, a sentença registrou que o crime foi cometido em ambiente doméstico, tendo o neto da patroa se aproveitado do convívio com a empregada da casa para praticá-lo – situação que se enquadra na hipótese do artigo 5º, inciso I, da Lei Maria da Penha.

De acordo com o ministro, "o que se exige é um nexo de causalidade entre a conduta criminosa e a relação de intimidade pré-existente, gerada pelo convívio doméstico, sendo desnecessária coabitação ou convívio contínuo entre o agressor e a vítima, podendo o contato ocorrer de forma esporádica".

Ao restabelecer a sentença, Sebastião Reis Júnior ressaltou parecer do Ministério Público Federal segundo o qual a existência de relação hierárquica e a hipossuficiência da vítima não deixam dúvidas quanto a se tratar de um caso de violência doméstica contra a mulher.

12 – Abrangên​​cia ampla

A violência combatida pela Maria da Penha pode ser cometida por qualquer pessoa, inclusive por outra mulher, que tenha uma relação familiar ou afetiva com a vítima.

A Quinta Turma, no julgamento do AgRg no AREsp 1.626.825, por constatar a situação de vulnerabilidade, aplicou a lei a um caso de violência praticada por neto contra a avó.

Para o relator, ministro Felix Fischer, a Maria da Penha objetiva proteger a mulher da violência doméstica e familiar cometida no âmbito da unidade doméstica, da família ou de qualquer relação íntima de afeto.

Fischer citou precedentes da corte (entre eles, o HC 310.154) que consideraram, com base na doutrina, que estão no âmbito de abrangência do delito de violência doméstica as esposas, companheiras ou amantes, bem como a mãe, filhas, netas, sogra, avó ou qualquer outra mulher que mantenha vínculo familiar ou afetivo com o agressor. 

13 – Mãe vulnerável​​, filhas agressoras

Da mesma forma, para o STJ, nos termos do artigo 5º, inciso III, da Lei 11.340/2006, é possível a caracterização de violência doméstica e familiar nas relações entre filhas e mãe, desde que os fatos tenham sido praticados em razão da relação de intimidade e afeto.

O entendimento foi firmado pela Quinta Turma em 2014, ao negar habeas corpus (HC 277.561) para duas mulheres acusadas de constrangerem e ameaçarem a própria mãe. Elas pediam a anulação do processo instaurado no Juizado de Violência Doméstica e a desconstituição das medidas protetivas deferidas com base nos artigos 22 e 23 da Lei 11.340/2006.

Segundo o ministro Jorge Mussi, as instâncias ordinárias apontaram a condição de vulnerabilidade da mãe na relação com as filhas agressoras, o que justifica a incidência da Maria da Penha.

"Infere-se que o objeto de tutela da Lei 11.340/2006 é a mulher em situação de vulnerabilidade não só em relação ao cônjuge ou companheiro, mas também qualquer outro familiar ou pessoa que conviva com a vítima, independentemente do gênero do agressor", acrescentou o ministro.

14 – Retratação só diant​​​e do juiz

Embora a representação da vítima não seja mais necessária para a abertura da ação penal no caso de lesão corporal em ambiente doméstico, o STJ ainda julga casos relacionados à situação jurídica anterior. Em 2019, a Quinta Turma não conheceu de habeas corpus apresentado pela defesa de um homem denunciado por lesão corporal e estupro – crime para o qual a legislação penal também deixou de exigir a representação, em 2018.

Segundo o relator, Ribeiro Dantas, a Lei Maria da Penha estabeleceu em seu artigo 16 um procedimento próprio para a retratação da vítima nas ações penais públicas condicionadas, exigindo que a renúncia à representação fosse manifestada em audiência perante o juiz, e antes do recebimento da denúncia. Por outro lado, a jurisprudência da corte considera que, depois de oferecida a denúncia, a representação do ofendido será irretratável, conforme o disposto nos artigos 102 do Código Penal e 25 do Código de Processo Penal.

No caso julgado, após o oferecimento da denúncia, a vítima compareceu ao cartório da vara e expressou o desejo de se retratar. Com base nisso, o juiz rejeitou a denúncia. O tribunal estadual mandou que a ação prosseguisse, e houve a impetração do habeas corpus no STJ.

O ministro Ribeiro Dantas explicou que, como a retratação ocorreu somente em cartório, e não em audiência, foi correta a decisão da corte local. Quanto ao estupro, o relator também considerou que a retratação não deveria ter efeito, pois foi manifestada após o oferecimento da denúncia.

15 – Agressões c​​ometidas pelo ex

"A Lei 11.340/2006 buscou proteger não só a vítima que coabita com o agressor, mas também aquela que, no passado, já tenha convivido no mesmo domicílio, contanto que haja nexo entre a agressão e a relação íntima de afeto que já existiu entre os dois", anotou o ministro Napoleão Nunes Maia Filho no julgamento do CC 102.832, em 2009.

Ao analisar o HC 542.828, o ministro Reynaldo Soares da Fonseca refutou a tese defensiva de que a ausência de contemporaneidade entre o delito de injúria e o casamento do ofensor com a vítima – rompido 20 anos antes – impediria a incidência da Maria da Penha.

Para a lei – acrescentou –, é irrelevante o tempo de dissolução do vínculo conjugal, se a conduta tida como criminosa está vinculada à relação de afeto que houve entre as partes.

Em outro processo (HC 477.723), a defesa afirmou que a Maria da Penha não poderia ser aplicada, pois o acusado e a vítima estavam separados de fato havia 13 anos. No entanto, segundo a ministra Laurita Vaz, sendo o agressor e a vítima ex-cônjuges, "pode-se concluir, em tese, que há entre eles relação íntima de afeto para fins de aplicação das normas contidas na Lei Maria da Penha".

Parte dos processos mencionados no texto tramitou em segredo de Justiça, razão pela qual os números não são divulgados.

Esta notícia refere-se ao(s) processo(s):HC 196253Pet 11805HC 590301REsp 1743996HC 184990CC 150712AREsp 1626825HC 310154HC 277561CC 102832HC 542828HC 477723

Disponível em : <https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/08082021-Violencia-domestica-15-interpretacoes-que-reforcaram-a-protecao-da-mulher-em-15-anos-da-Lei-Maria-da-Penha.aspx>. Acesso em 12.11.2022

 

segunda-feira, 19 de setembro de 2022

Os quatro lados de um projeto de ruína: as pirâmides financeiras segundo a jurisprudência do STJ

Os quatro lados de um projeto de ruína: as pirâmides financeiras segundo a jurisprudência do STJ

De um lado, um grupo interessado em ganhar dinheiro por meio de uma estrutura montada apenas para beneficiar seus criadores, mediante a captação de recursos de indivíduos "recrutados"; do outro lado, uma grande quantidade de pessoas atraídas pela perspectiva de lucro fácil, mas normalmente alheia ao verdadeiro objetivo dos captadores; na terceira face, um discurso que mistura marketing, falsas promessas e a "venda" de sonhos; na última face, o verdadeiro propósito dessa suposta oportunidade: o pagamento para aderir ao sistema ou a exigência de compra dos produtos oferecidos pelos recrutadores, trazendo cada vez mais dinheiro para os idealizadores do negócio.

Essas são as quatro faces das chamadas pirâmides financeiras (ou Esquema Ponzi), sistema fraudulento identificado pela primeira vez há mais de cem anos, nos Estados Unidos.

Conforme explicou o ministro Reynaldo Soares da Fonseca no julgamento do CC 146.153, a pirâmide financeira se caracteriza por prometer ganhos cujo pagamento depende do ingresso de novos investidores. "Como, a partir de determinado momento, mostra-se inviável manter o ingresso de investidores em proporção suficiente para que suas novas contribuições arquem com os lucros prometidos àqueles que ingressaram previamente, o sistema não tem como se alimentar de recursos e entra em colapso, prejudicando aqueles que aderiram por último, uma vez que não chegam a recuperar nem mesmo o montante investido" – descreveu o magistrado.

O objetivo é beneficiar os que estão no topo da pirâmide

Outra forma de pirâmide, segundo o ministro, ocorre sob o disfarce de marketing multinível – um tipo de negócio, em princípio, legítimo, explorado por empresas sérias. Com frequência, porém, os negócios apresentados como marketing multinível escondem um esquema similar aos das pirâmides financeiras, no qual é oferecida aos associados uma perspectiva de lucros futuros irreais, cujo pagamento também depende do ingresso de novos investidores ou da aquisição de produtos para uso próprio pelos participantes, em vez de vendas para consumidores que não integram o esquema.

Como o objetivo é beneficiar os que estão no topo da pirâmide – em regra, os seus idealizadores –, o sistema acaba prejudicando a maior parte daqueles que são recrutados pela estrutura. No final, como são necessários cada vez mais recursos para manter a pirâmide, a tendência é o colapso do esquema – e a ruína dos participantes, que, muitas vezes de boa-fé, aceitaram integrar a organização, dedicando tempo e dinheiro ao projeto, e que jamais recuperam o seu investimento.

Organizar pirâmide financeira é crime, mas em que tipo penal a conduta se enquadra? E qual ramo da Justiça é competente para o julgamento do delito? Essas são algumas questões decididas nos muitos processos sobre pirâmide que já chegaram ao Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Pirâmides são definidas como crime contra a economia popular

No CC 146.153, a Terceira Seção estabeleceu que a captação de recursos por meio de pirâmide não se enquadra no conceito de atividade financeira para fins de incidência da Lei 7.492/1986 (que define os crimes contra o Sistema Financeiro Nacional), amoldando-se mais ao delito previsto no artigo 2º, inciso IX, da Lei 1.521/1951 (que dispõe sobre os crimes contra a economia popular).

No caso que deu origem ao conflito de competência, as investigações identificaram um esquema no qual as pessoas seriam atraídas para a realização de testes de jogos on-line, mediante aquisição dos produtos, com a promessa de remuneração pela participação nos testes e pela indicação de novos usuários para aderir ao programa. Na realidade, segundo a apuração policial, o dinheiro captado servia apenas para a remuneração dos idealizadores do esquema – um golpe que vitimou pessoas no Brasil e no exterior, com uma movimentação suspeita de mais de R$ 200 milhões. 

Instaurado o inquérito, a Justiça estadual de São Paulo se declarou incompetente para conduzir o caso, por entender que a ação continha indícios de crime contra o Sistema Financeiro Nacional – o que caracterizaria a competência da Justiça Federal. Ao receber os autos, a Justiça Federal suscitou o conflito, por entender que, em tese, seria o caso de crime contra a economia popular, de competência da Justiça estadual.

O ministro Reynaldo Soares da Fonseca lembrou que, nos termos da Súmula 498 do Supremo Tribunal Federal (STF), compete à Justiça estadual, em ambas as instâncias, o julgamento de crimes contra a economia popular.

Com base em informações do Ministério da Fazenda, o ministro apontou sete características que permitem identificar um esquema de pirâmide financeira:



No caso dos autos, Reynaldo Soares da Fonseca destacou que a conduta das empresas – correspondente a pelo menos quatro das sete características indicadas pelo Ministério da Fazenda – configurava não um delito contra o sistema financeiro, mas, sim, um crime contra a economia popular e, por consequência, de competência da Justiça estadual.  

Há bis in idem na imputação de estelionato e de crime contra a economia popular

No RHC 132.655, a Sexta Turma analisou a possibilidade da configuração do chamado bis in idem por causa da imputação ao réu, de forma conjunta, das condutas descritas nos artigos 171 do Código Penal (estelionato) e 2º, inciso IX, da Lei 1.521/1951 (crime contra a economia popular).

Os autos foram derivados da Operação Faraó, investigação que apurou pirâmide financeira estruturada sob a aparência de negócio de apostas em sites esportivos. Segundo a polícia, as vítimas eram induzidas a adquirir planos em dólares, cujos rendimentos seriam pagos em bitcoins. A empresa prometia que os ganhos na intermediação das apostas seriam suficientes para pagar os rendimentos dos investidores e, como prova do sucesso do negócio, seus administradores ostentavam carros e outros bens luxuosos, com o objetivo de despertar novos interessados.

No curso das investigações, foi constatada a desvinculação entre a captação de recursos e a aplicação no sistema de apostas, além da imposição de limitações aos investidores que desejavam retirar o dinheiro aplicado.

Com base nesses elementos, o Ministério Público denunciou os réus tanto por crime contra a economia popular – em virtude da especulação financeira e da falsa promessa de rendimentos fora da realidade – quanto pelo delito de estelionato – em razão do engano imposto às vítimas, que acreditavam estar investindo em bolsas de apostas estrangeiras quando, na verdade, estavam entregando seus recursos para usufruto dos empresários.

O ministro Rogerio Schietti Cruz, relator do recurso em habeas corpus, destacou que as circunstâncias dos autos – que motivaram as duas capitulações penais – são semelhantes, pois mencionam a prática de golpe e a indução das vítimas em erro.

Com base nos precedentes do STJ sobre a relação entre a identificação dos ofendidos e a tipificação do crime de estelionato, o ministro entendeu que, no caso, não havia justificativa plausível para a manutenção da denúncia em relação ao estelionato, sob pena de indevido bis in idem. Por consequência, a Sexta Turma determinou o prosseguimento da ação penal apenas pelo crime contra a economia popular.     

Pirâmides não constituem crime contra o mercado de capitais

Ao realizar o enquadramento penal das pirâmides financeiras, no HC 293.052, a Quinta Turma entendeu que esse tipo de estrutura fraudulenta também não se insere nos crimes contra o mercado de capitais (Lei 6.385/1976).

No caso analisado, uma empresa oferecia aos consumidores a oportunidade de se "associarem" a um sistema de venda de rastreadores, desde que pagassem uma taxa mensal para utilização do equipamento e comprassem um dos planos oferecidos, além de ficarem responsáveis pela venda de rastreadores. A empresa também prometia a distribuição de brindes milionários àqueles que trouxessem novos associados para o grupo.

Para o Ministério Público, na verdade, a negociação dos rastreadores escondia verdadeiro esquema de pirâmide financeira e, por isso, os réus foram denunciados pela prática de crimes contra o mercado de capitais, contra o sistema financeiro nacional, de lavagem de dinheiro e de organização criminosa.

O ministro Reynaldo Soares da Fonseca destacou que, embora o MP tenha apontado que as empresas exerciam atividades típicas de instituições financeiras, a própria descrição dos fatos afastava a ideia da existência de uma instituição financeira, o que impedia a aplicação da Lei 7.492/1986.

O relator também fez referência ao artigo 27-E da Lei 6.385/1976 – apontado pelo MP na denúncia –, o qual define como crime contra o mercado de capitais o exercício da atividade de administrador de carteira de investimentos ou assemelhado, sem autorização ou registro na autoridade administrativa competente.

Para o ministro, contudo, o dispositivo não atinge a conduta imputada aos réus, o que afastou a configuração de crime contra o mercado de capitais e a competência da Justiça Federal para julgar a ação penal.   

Determinação das vítimas diferencia estelionato do delito contra a economia popular

A Sexta Turma, no HC 464.608, estabeleceu as diferenças entre o crime de estelionato (artigo 171 do Código Penal) e o crime de ganhos fraudulentos em detrimento do povo ou de número indeterminado de pessoas (artigo 2º, inciso IX, da Lei 1.521/1951), tendo como base o cometimento do crime contra vítimas determinadas ou indeterminadas.

Na ação, o réu foi denunciado por estelionato, devido à participação em esquema que atraía pessoas por meio da oferta de opções de investimento com lucro acima da média do mercado. Segundo o depoimento de vítimas, a empresa da qual participava o réu prometia ganho mensal de 60% do valor investido em anúncios na internet, além de garantir que aquele que entrasse no sistema com a indicação de outro investidor receberia, imediatamente, 40% do valor aplicado.

No decorrer das investigações, a polícia constatou o esquema de pirâmide financeira, identificou diversos investidores lesados e, ao mesmo tempo, apreendeu com os administradores da empresa vários veículos de luxo e milhares de dólares.

Para o Ministério Público, estava configurado o delito de estelionato porque o réu, por meio da empresa, utilizava meios fraudulentos para a obtenção de vantagem indevida, por meio da atração de pessoas físicas e jurídicas pela internet.

Relator do habeas corpus, o ministro aposentado Nefi Cordeiro apontou que, de acordo com as informações dos autos, ficou claro que o esquema era direcionado para a captação de pessoas de forma genérica, em número indeterminado, "escapando da caracterização do tipo penal do estelionato, que exige vítimas específicas".

Como resultado desse entendimento, a Sexta Turma corrigiu a imputação penal para o delito contra a economia popular e, na sequência, reconheceu a prescrição da pretensão punitiva contra o réu.

Competência da Justiça Federal só ocorre se houver lesão a interesses da União

Na Terceira Seção, no CC 170.392, os ministros entenderam que, na falta de elementos que demonstrem a evasão de divisas ou a lavagem de dinheiro em detrimento de interesses da União, era de competência da Justiça estadual julgar crimes relacionados a uma pirâmide financeira focada em investimentos em criptomoedas.

Na ação que deu origem ao conflito de competência, uma das vítimas alegou que foi persuadido a investir nas moedas digitais, sob a promessa de que receberia lucro mensal de 55% sobre o valor aplicado.

Após o primeiro investimento, a vítima relatou que foi incluída em um grupo de WhatsApp cujos integrantes eram convidados a investir novos valores e a convencer outras pessoas a participarem do negócio. No total, a vítima aplicou mais de R$ 24 mil. Contudo, ela disse que, dois meses após o início dos investimentos, não era mais possível ter contato com a empresa, a qual teria se apropriado dos valores aplicados.

inquérito policial foi inicialmente remetido à Justiça Federal, mas o juízo suscitou o conflito de competência.

O relator, ministro Joel Ilan Paciornik, citou precedentes no sentido de que, em se tratando de crime contra a economia popular, de competência da Justiça estadual, o deslocamento dos autos para a Justiça Federal só seria possível se demonstrada a evasão de divisas ou o crime de lavagem de dinheiro em detrimento de bens, serviços ou interesses da União, ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas.

"Como se vê, o juízo estadual suscitado discordou da capitulação jurídica de estelionato, mas deixou de verificar a prática, em tese, de crime contra a economia popular, cuja apuração compete à Justiça estadual, nos termos da Súmula 498/STF. Ademais, ao declinar da competência, o juízo suscitado não demonstrou especificidades do caso que revelassem conduta típica praticada em prejuízo de bens, serviços ou interesse da União", afirmou o ministro.

Esta notícia refere-se ao(s) processo(s):CC 146153RHC 132655HC 293.052HC 464608CC 170392

Disponível em: <https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2022/18092022-Os-quatro-lados-de-um-projeto-de-ruina-as-piramides-financeiras-segundo-a-jurisprudencia-do-STJ.aspx>. Acesso em 19.09.2022.

STJ - Para Terceira Seção, responsabilização penal de empresa não é transferida com incorporação.

STJ - Para Terceira Seção, responsabilização penal de empresa não é transferida com incorporação

A Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ), por maioria, decidiu que a responsabilização penal de empresa incorporada não pode ser transferida à sociedade incorporadora. O colegiado fixou o entendimento de que o princípio da intranscendência da pena, previsto no artigo 5º, inciso XLV, da Constituição Federal, pode ser aplicado às pessoas jurídicas.

De acordo com o processo, o Ministério Público do Paraná ofereceu denúncia contra uma sociedade empresária agrícola, imputando-lhe a prática do delito previsto no artigo 54, parágrafo 2º, inciso V, da Lei 9.605/1998, pelo suposto descarte de resíduos sólidos em desconformidade com as exigências da legislação estadual. A controvérsia que chegou ao STJ diz respeito ao fato de a empresa acusada originariamente ter sido incorporada por outra.

Após a decisão que rejeitou as preliminares da defesa, a empresa incorporadora impetrou mandado de segurança, alegando a extinção da punibilidade diante do encerramento da personalidade jurídica da ré originária da ação penal – a sociedade empresarial agrícola. Assim, por aplicação analógica do artigo 107, inciso I, do Código Penal (CP), que trata da morte do réu, seria inviável o prosseguimento da ação contra a incorporadora. O Tribunal de Justiça do Paraná concedeu a segurança.

No recurso encaminhado ao STJ, o Ministério Público sustentou que tanto o princípio da intranscendência da pena como o artigo 107, inciso I, do CP têm incidência restrita às pessoas naturais, únicas capazes de morrer, sobretudo porque as penas patrimoniais previstas na Lei 9.605/1998 poderiam ser assumidas pela incorporadora.

Pretensão punitiva estatal não se confunde com obrigações transmissíveis

O relator do recurso, ministro Ribeiro Dantas, observou que a incorporação é uma operação societária típica, por meio da qual apenas a sociedade empresária incorporadora continuará a existir, na qualidade de sucessora de todas as relações patrimoniais da incorporada, cuja personalidade jurídica é extinta.

O magistrado apontou que a sucessão da incorporada pela incorporadora se opera quanto a direitos e obrigações compatíveis com a natureza da incorporação, conforme se conclui a partir dos artigos 1.116 do Código Civil e 227 da Lei 6.404/1976.

"A pretensão punitiva estatal não se enquadra no conceito jurídico-dogmático de obrigação patrimonial transmissível, tampouco se confunde com o direito à reparação civil dos danos causados ao meio ambiente. Logo, não há norma que autorize a transferência da responsabilidade penal à incorporadora", declarou Ribeiro Dantas.

Princípio da intranscendência da pena vale também para pessoas jurídicas

Para o relator, a extinção legal da pessoa jurídica ré – sem nenhum indício de fraude – leva à aplicação analógica do artigo 107, inciso I, do CP, com o consequente término da punibilidade.

O ministro destacou, ainda, que o princípio da intranscendência da pena pode ser aplicado às pessoas jurídicas, o que reforça a tese de que a empresa incorporadora não deve ser responsabilizada penalmente pelos crimes da incorporada.

"Se o direito penal brasileiro optou por permitir a responsabilização criminal dos entes coletivos, mesmo com as peculiaridades decorrentes da ausência de um corpo biológico, não pode ser negada a eles a aplicação de garantias fundamentais utilizando-se dessas mesmas peculiaridades como argumento", concluiu o relator ao negar provimento ao recurso especial do Ministério Público. 

Esta notícia refere-se ao(s) processo(s):REsp 1977172

Fonte disponível em: <https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2022/19092022-Para-Terceira-Secao--responsabilizacao-penal-de-empresa-nao-e-transferida-com-incorporacao.aspx>. Acesso em 19.09.2022


segunda-feira, 29 de agosto de 2022

STJ: Asilo inviolável, mas nem sempre: o STJ e o ingresso policial em domicílio

Asilo inviolável, mas nem sempre: o STJ e o ingresso policial em domicílio

A entrada de forças policiais na residência do investigado é, provavelmente, um dos momentos de maior tensão entre o interesse público – nesse caso, a pretensão do Estado de manter a ordem, investigar e punir ilícitos – e as garantias individuais, como a intimidade, a privacidade e a inviolabilidade do domicílio.  

Quando o ingresso policial é amparado em mandado judicial – apesar de também haver momentânea mitigação do princípio da inviolabilidade domiciliar –, há menos discussão nos tribunais e na esfera doutrinária sobre eventual ilegalidade; a controvérsia principal se dá nas situações em que a entrada dos agentes não é precedida de autorização judicial, como em situações de alegado flagrante.  

No caso do ingresso sem mandado, são comuns os pedidos de anulação das provas obtidas na diligência em virtude de aspectos como a falta de consentimento do morador ou a inexistência da comprovação de investigações prévias que embasassem a ação policial.  

Afinal, quais são os critérios para o ingresso da polícia em uma residência? Em meio a esse debate, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem corrigido ilegalidades e fixado parâmetros para evitar que elas ocorram.

Ordem genérica contra moradores de comunidades pobres

Em 2019, a Sexta Turma do STJ, no julgamento de habeas corpus impetrado pela Defensoria Pública, anulou uma autorização judicial para busca e apreensão coletiva em residências de comunidades pobres do Rio de Janeiro. O colegiado considerou que a ordem, genérica e indiscriminada, não identificava os nomes de investigados nem os endereços específicos que deveriam ser objeto da diligência policial.

Segundo a Defensoria, a medida foi tomada em 2017 após a morte de um policial, para que os agentes tentassem encontrar armas, documentos, celulares e outras provas contra facções criminosas.

O relator do HC 435.934, ministro Sebastião Reis Júnior, afirmou que "não é possível a concessão de ordem indiscriminada de busca e apreensão para a entrada da polícia em qualquer residência. A carta branca à polícia é inadmissível, devendo-se respeitar os direitos individuais. A suspeita de que na comunidade existam criminosos e que crimes estejam sendo praticados diariamente, por si só, não autoriza que toda e qualquer residência do local seja objeto de busca e apreensão".

Leia também: Sexta Turma considera ilegal busca e apreensão coletiva em comunidades pobres do Rio

De acordo com o ministro, o mandado de busca e apreensão deve ter objetivo certo e pessoa determinada. A falta de individualização das medidas contrariou vários dispositivos legais, inclusive o artigo 5°, XI, da Constituição Federal, que traz como direito fundamental a inviolabilidade do domicílio.

Busca e apreensão em apartamento desabitado sem autorização judicial 

A Quinta Turma, no HC 588.445, entendeu não haver nulidade na busca feita por policiais, sem mandado judicial, em apartamento que não revelava sinais de habitação e sobre o qual havia fundada suspeita de servir para a prática de crime permanente.

Segundo o ministro Reynaldo Soares da Fonseca, relator, a proteção constitucional da casa, independentemente de seu formato e sua localização, de se tratar de bem móvel ou imóvel, pressupõe que o indivíduo a utilize para fins de habitação – ainda que de forma transitória, pois o bem jurídico tutelado é a intimidade da vida privada.

No caso, o ministro verificou que houve uma denúncia anônima sobre armazenamento de drogas e de armas, e também informações dos vizinhos de que não haveria residentes no imóvel. Segundo os autos, a polícia teria feito uma vistoria externa, na qual não foram identificados indícios de ocupação por moradores, mas foi visualizada parte do material ilícito. Quando a força policial entrou no local, encontrou grande quantidade de drogas.

Segundo o magistrado, o crime de tráfico de drogas, na modalidade de guardar ou ter entorpecentes em depósito, possui natureza permanente. "Tal fato torna legítima a entrada de policiais em domicílio para fazer cessar a prática do delito, independentemente de mandado judicial, desde que existam elementos suficientes de probabilidade delitiva capazes de demonstrar a ocorrência de situação flagrancial", afirmou.

Ingresso em residência sem mandado e sem indícios suficientes de crime

Em 2017, a Sexta Turma negou provimento ao REsp 1.574.681, interposto pelo Ministério Público do Rio Grande do Sul, e manteve a absolvição de um homem acusado de tráfico de drogas, ao reconhecer a ilicitude da prova colhida em busca realizada no interior de sua residência sem autorização judicial.

De acordo com o processo, o denunciado, ao avistar policiais militares em patrulhamento de rotina em local conhecido como ponto de venda de drogas, correu para dentro da casa, onde foi abordado.

Após buscas na residência, os policiais encontraram 18 pedras de crack. Pelo crime previsto no artigo 33 da Lei 11.343/2006, o morador foi condenado, em primeira instância, à pena de quatro anos e dois meses de reclusão, em regime inicial semiaberto. O Tribunal de Justiça, no entanto, absolveu o acusado por considerar ilícita a violação domiciliar.

Para o relator do recurso da acusação, ministro Rogerio Schietti Cruz, o contexto fático anterior à invasão não permitia a conclusão da ocorrência de crime no interior da residência que justificasse o ingresso dos agentes.

De acordo com o ministro, os policiais até poderiam ter abordado o suspeito em via pública para averiguação, mas a simples intuição quando à prática de tráfico não configura, por si só, justa causa capaz de autorizar o ingresso em domicílio sem o consentimento do morador – que deve ser mínima e seguramente comprovado – e sem determinação judicial.

O relator reconheceu que o combate ao crime organizado exige uma postura mais enérgica por parte das autoridades, mas afirmou que a coletividade, "sobretudo a integrada por segmentos das camadas sociais mais precárias economicamente", precisa ver preservados "seus mínimos direitos e suas garantias constitucionais".

Dúvida sobre autorização do morador para entrada na casa

No julgamento do HC 674.139, em fevereiro deste ano, a Sexta Turma estabeleceu que, em caso de dúvidas entre a versão da polícia – que diz ter sido autorizada a ingressar na residência – e a do morador – que diz ter sido induzido em erro pelos agentes –, deve prevalecer esta última. Com esse entendimento, o colegiado reconheceu a ilegalidade das provas supostamente colhidas em uma diligência e concedeu habeas corpus para absolver um acusado por tráfico de drogas.

O morador relatou que os policiais afirmaram estar procurando um assaltante e lhe pediram para abrir o portão. Segundo ele, após atender ao pedido, os policiais passaram a procurar drogas, mas – afirmou – não teriam encontrado nada. Por outro lado, os policiais narraram que, após denúncia recebida pela central, foram ao local e viram o réu saindo de motociclo com um revólver. Ao ser informado da denúncia, ele teria admitido haver drogas em casa e autorizado a entrada dos agentes, que encontraram tabletes de maconha e porções de cocaína.

O relator do habeas corpus, ministro Rogerio Schietti, recordou que a inviolabilidade de domicílio é direito fundamental previsto constitucionalmente e que a sua violação não pode ser legitimada pela simples constatação de situação de flagrância posterior ao ingresso não autorizado.

Ele destacou que o Supremo Tribunal Federal (STF), ao julgar o RE 603.616, com repercussão geral, decidiu que o ingresso forçado em domicílio sem mandado só é lícito quando amparado em fundadas razões, com lastro em circunstâncias objetivas que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente e de nulidade das provas obtidas.

"Caberia aos agentes que atuam em nome do Estado demonstrar, de modo inequívoco, que o consentimento do morador foi livremente prestado, ou que havia em curso na residência uma clara situação de comércio espúrio de droga, a autorizar o ingresso domiciliar mesmo sem consentimento válido do morador. Entretanto, não se demonstrou preocupação em documentar esse consentimento, quer por escrito, quer por testemunhas, quer, ainda e especialmente, por registro de áudio-vídeo", afirmou o magistrado.

Teoria da aparência e a autorização de ingresso em residência

No entanto, havendo a autorização de parente hospedado em domicílio particular, é legítima a entrada de policiais no local sem mandado judicial.

Com esse entendimento, a Quinta Turma, no julgamento do RHC 141.544, manteve uma ação penal contra mãe e filho suspeitos de tráfico de drogas. A investigação partiu de denúncia anônima sobre o plantio de maconha em propriedade rural localizada em São José dos Pinhais (PR). A revista foi autorizada por uma mulher que estava na casa e se identificou como nora da dona da chácara. Os policiais encontraram no local 155 pés de maconha, 780g de sementes e utensílios utilizados na estufa para o cultivo da planta.

Para o relator, ministro Reynaldo Soares da Fonseca, mesmo a autorização tendo sido dada por pessoa não residente no imóvel – no caso, uma hóspede não eventual –, essa situação não é capaz, por si só, de tornar ilícita a ação policial. Para o ministro, deve-se aplicar ao caso a teoria da aparência, pois quem autorizou o ingresso dos agentes foi a ex-companheira do filho da proprietária, que se referiu a ela como "sogra".

O ministro explicou também que, por ser crime permanente, quem guarda drogas em casa está em situação de flagrante. "Legítima, portanto, a entrada de policiais para fazer cessar a prática do delito, independentemente de mandado judicial, desde que existam elementos suficientes de probabilidade delitiva", afirmou.

Desvio de finalidade após a invasão do domicílio

Por se tratar de medida invasiva e que restringe o direito fundamental à intimidade, o ingresso em morada alheia deve se limitar ao estritamente necessário para cumprir a sua finalidade, conforme estabelece o artigo 248 do Código de Processo Penal (CPP), segundo o qual, "em casa habitada, a busca será feita de modo que não moleste os moradores mais do que o indispensável para o êxito da diligência".

No julgamento do HC 663.055, a Sexta Turma considerou ilícitas as provas colhidas em uma caixa no interior de residência (drogas e uma munição calibre .32), uma vez que os policiais ali entraram sem ordem judicial e sem haver uma situação que justificasse a invasão.

De acordo com o processo, o morador foi abordado na rua pela polícia e, tentando esconder o fato de já ter registro de envolvimento com drogas, identificou-se com dados de seu irmão, sem saber que contra este havia um mandado de prisão em aberto. Ao ser informado da existência do mandado, o morador conseguiu fugir. Enquanto uma equipe policial o procurava, outra foi à sua casa, onde procedeu a uma minuciosa revista.

Para o relator no STJ, ministro Rogerio Schietti, nenhuma circunstância do caso justificava o ingresso dos policiais na residência sem autorização judicial – nem o crime de falsa identidade, pois os agentes ainda não sabiam que o suspeito havia mentido; nem o mandado de prisão, pois não foi respeitado o artigo 293 do CPP, e a polícia nem mesmo sabia se o fugitivo estava ou não ali.

Além disso, o ministro observou que, mesmo se admitida a possibilidade de ingresso no domicílio para cumprimento do mandado de prisão ou até por flagrante do crime de falsa identidade, houve desvirtuamento da finalidade do ato, porque as drogas e a munição foram apreendidas em uma caixa de papelão que estava no chão de um dos quartos – evidência de que não houve mero encontro fortuito enquanto se procurava pelo fugitivo.

"Admitir a entrada na residência especificamente para efetuar uma prisão não significa conceder um salvo-conduto para que todo o seu interior seja vasculhado indistintamente, em verdadeira pescaria probatória (fishing expedition), sob pena de nulidade das provas colhidas por desvio de finalidade", disse o magistrado.

Esta notícia refere-se ao(s) processo(s):HC 435934HC 588445REsp 1574681HC 674139RHC 141544HC 663055

Disponível em: <https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/28082022-Asilo-inviolavel--mas-nem-sempre-o-STJ-e-o-ingresso-policial-em-domicilio.aspx>. Acesso em 29.08.2022 


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