quarta-feira, 26 de abril de 2023

STJ - Corte Especial admite relativizar impenhorabilidade do salário para pagamento de dívida não alimentar

STJ - Corte Especial admite relativizar impenhorabilidade do salário para pagamento de dívida não alimentar

Em julgamento de embargos de divergência, a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça (STJ) estabeleceu que, em caráter excepcional, é possível relativizar a regra da impenhorabilidade das verbas de natureza salarial para pagamento de dívida não alimentar, independentemente do montante recebido pelo devedor, desde que preservado valor que assegure subsistência digna para ele e sua família.

O colegiado acompanhou o relator, ministro João Otávio de Noronha, para quem essa relativização somente deve ser aplicada "quando restarem inviabilizados outros meios executórios que garantam a efetividade da execução", e desde que "avaliado concretamente o impacto da constrição sobre os rendimentos do executado".

Condições para afastar a impenhorabilidade dos salários

Os embargos de divergência foram interpostos por um credor contra acórdão da Quarta Turma que indeferiu o pedido de penhora de 30% do salário do executado – em torno de R$ 8.500. A dívida objeto da execução tem origem em cheques de aproximadamente R$ 110 mil.

A Quarta Turma entendeu que a jurisprudência do STJ se firmou no sentido de que a regra geral da impenhorabilidade das verbas de natureza salarial comporta exceção nas seguintes hipóteses: a) para o pagamento de prestação alimentícia de qualquer origem, independentemente do valor da remuneração recebida; e b) para o pagamento de qualquer outra dívida não alimentar, quando os valores recebidos pelo executado forem superiores a 50 salários mínimos mensais, ressalvando-se eventuais particularidades do caso concreto. Em ambas as situações, deve ser preservado percentual capaz de assegurar a dignidade do devedor e de sua família.

Contudo, o credor apontou precedentes da Corte Especial e da Terceira Turma que condicionaram o afastamento do caráter absoluto da impenhorabilidade das verbas de natureza salarial apenas ao fato de a medida constritiva não comprometer a subsistência digna do devedor e de sua família, independentemente da natureza da dívida ou dos rendimentos do executado.

Segundo o ministro João Otávio de Noronha, a divergência estava em definir se a impenhorabilidade, na hipótese de dívida de natureza não alimentar, estaria condicionada apenas à garantia do mínimo necessário para a subsistência digna do devedor e de sua família ou se, além disso, deveria ser observado o limite mínimo de 50 salários mínimos recebidos pelo devedor.

É possível a relativização da regra da impenhorabilidade do artigo 833 do CPC

Para o relator, o Código de Processo Civil (CPC), ao suprimir a palavra "absolutamente" no caput do artigo 833, passou a tratar a impenhorabilidade como relativa, "permitindo que seja atenuada à luz de um julgamento principiológico, em que o julgador, ponderando os princípios da menor onerosidade para o devedor e da efetividade da execução para o credor, conceda a tutela jurisdicional mais adequada a cada caso, em contraponto a uma aplicação rígida, linear e inflexível do conceito de impenhorabilidade".

O ministro afirmou que esse juízo de ponderação deve ser feito à luz da dignidade da pessoa humana, que resguarda tanto o devedor quanto o credor, e mediante o emprego dos critérios de razoabilidade e da proporcionalidade.

"A fixação desse limite de 50 salários mínimos merece críticas, na medida em que se mostra muito destoante da realidade brasileira, tornando o dispositivo praticamente inócuo, além de não traduzir o verdadeiro escopo da impenhorabilidade, que é a manutenção de uma reserva digna para o sustento do devedor e de sua família", disse.

Dessa forma, o relator entendeu que é possível a relativização do parágrafo 2º do artigo 833 do CPC, de modo a se autorizar a penhora de verba salarial inferior a 50 salários mínimos, em percentual condizente com a realidade de cada caso concreto, desde que assegurado montante que garanta a dignidade do devedor e de sua família.

Esta notícia refere-se ao(s) processo(s):EREsp 1874222

Disponível em: <https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2023/25042023-Corte-Especial-admite-relativizar-impenhorabilidade-do-salario-para-pagamento-de-divida-nao-alimentar.aspx>.Acesso em 26.04.2023


 

domingo, 12 de março de 2023

STJ - Teses da Primeira Seção consagram direito à informação ambiental e obrigação do Estado com a transparência!

Teses da Primeira Seção consagram direito à informação ambiental e obrigação do Estado com a transparência

Em julgamento do Incidente de Assunção de Competência (IAC 13), a Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) estabeleceu quatro teses relativas ao direito de acesso à informação no direito ambiental, à possibilidade de registro das informações em cartório e à atuação do Ministério Público em tais questões. As teses foram as seguintes:

1. O direito de acesso à informação no direito ambiental brasileiro compreende: i) o dever de publicação, na internet, dos documentos ambientais detidos pela administração não sujeitos a sigilo (transparência ativa); ii) o direito de qualquer pessoa e entidade de requerer acesso a informações ambientais específicas não publicadas (transparência passiva); e iii) o direito a requerer a produção de informação ambiental não disponível para a administração (transparência reativa);

2. Presume-se a obrigação do Estado em favor da transparência ambiental, sendo ônus da administração justificar seu descumprimento, sempre sujeita a controle judicial, nos seguintes termos: i) na transparência ativa, demonstrando razões administrativas adequadas para a opção de não publicar; ii) na transparência passiva, de enquadramento da informação nas razões legais e taxativas de sigilo; e iii) na transparência ambiental reativa, da irrazoabilidade da pretensão de produção da informação inexistente;

3. O regime registral brasileiro admite a averbação de informações facultativas sobre o imóvel, de interesse público, inclusive as ambientais;

4. O Ministério Público pode requisitar diretamente ao oficial de registro competente a averbação de informações alusivas a suas funções institucionais.

Nos termos do artigo 947 do Código de Processo Civil de 2015, o IAC é admissível quando o julgamento de recurso envolver relevante questão de direito, com grande repercussão social, sem repetição em múltiplos processos. O IAC está entre os precedentes qualificados de observância obrigatória pelos juízes e tribunais, conforme o artigo 927, inciso IIII, do CPC/2015.  

Informação ambiental é elemento primordial da democracia

IAC teve origem em ação na qual o Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul (TJMS) havia rejeitado o pedido do Ministério Público estadual para que o município de Campo Grande fosse obrigado a publicar periodicamente os atos executórios do plano de manejo da Área de Proteção Ambiental (APA) do Lajeado, criada para assegurar o abastecimento de água na região; bem como para que a APA fosse inscrita na matrícula dos imóveis que a integram. Para o TJMS, as medidas requeridas pelo MP não teriam previsão legal.

O relator do recurso no STJ, ministro Og Fernandes, esclareceu que o debate dos autos não envolve discussão sobre a averbação de APA à luz do Código Florestal, em oposição ao Cadastro Ambiental Rural, mas sobre a incidência, na hipótese, da Lei de Acesso à Informação (LAI) e da Lei de Acesso à Informação Ambiental.

Segundo o relator, o acesso à informação ambiental é elemento primordial, "transcendente e magnético", em tudo aquilo que diga respeito à coisa pública e à democracia, em especial nas matérias ecológicas.

Essa relação entre o direito de acesso à informação ambiental e o direito de participação cidadã, apontou, foi cristalizada em eventos como a Rio 92 – na qual foi publicada a Declaração do Rio – e assumida pelo Brasil ao assinar o Acordo Regional sobre Acesso à Informação, Participação Pública e Acesso à Justiça em Assuntos Ambientais na América Latina e no Caribe (Acordo de Escazú) – tratado ainda pendente de ratificação pelo Congresso. 

"No caso presente, ante sua judicialização, agrega-se ainda um terceiro pilar dos direitos de acesso às questões ambientais, consubstanciado pelo Princípio 10 da Declaração do Rio: o direito de acesso à Justiça. Os três direitos de acesso em matéria ambiental se articulam, de forma interdependente, como elementos estruturais e conectivos entre os direitos humanos e o meio ambiente", afirmou o ministro.

Estado e transparência passiva, ativa e reativa

Og Fernandes explicou que o direito de informação ambiental é formado de duas partes principais: o direito de as pessoas requisitarem informações ambientais ao Estado (transparência passiva) e o dever estatal de fornecer informações às pessoas (transparência ativa). O magistrado lembrou que, embora tradicionalmente o poder público tenha se pautado pela transparência passiva, a tendência atual é de ampliação da transparência ativa – elemento revelador do nível de maturidade democrática e civilidade do país.

Nesse contexto, o ministro apontou que o artigo 2º da Lei de Acesso à Informação Ambiental protege o direito público de acesso às informações sob guarda da administração relativas a políticas, planos e programas causadores de impacto ambiental, entre outros assuntos. Já o artigo 8º da LAI estipula como dever dos órgãos públicos promover, independentemente de requerimentos, a divulgação de informações de interesse coletivo por eles produzidas ou custodiadas.

"Deve-se integrar as duas normas e intensificar seus efeitos. A partir da LAI, não há mais dúvidas de que o direito de acesso à informação não é unicamente um direito de defesa do cidadão contra o abuso estatal, mas um dever prestacional do Estado democrático", comentou o magistrado ao lembrar que o plano de manejo ambiental – objeto de discussão nos autos – se inclui entre essas informações de interesse social amplo.

Administração tem o dever de oferecer acesso e produzir informação ambiental

No caso analisado, Og Fernandes entendeu que não seria lógico que a Lei 9.985/2000 previsse a participação social na gestão das unidades de conservação ambiental e o poder público vedasse ou dificultasse o acesso da sociedade às informações sobre a execução do plano em APAs.

"A administração tem o dever não só de viabilizar o acesso à informação ambiental sob sua guarda, como também de produzi-la. Digamos, configurado na hipótese, o dever de transparência reativa, à míngua de melhor nome", sugeriu o relator.

Diante do princípio da máxima publicidade na esfera ambiental, o ministro também reforçou que as situações de sigilo são extremamente excepcionais, competindo ao Estado demonstrar a presença de circunstâncias restritivas ao direito de informação.

Para Og Fernandes, o Judiciário deve considerar a obrigação da publicidade das informações ambientais para, a partir dessa perspectiva, analisar as razões da administração para não divulgar determinado dado – sem ceder à simples justificativa da discricionariedade administrativa.

"Nessa lógica, sob qualquer ângulo, parece-me inegável o dever estatal – no caso concreto, da municipalidade – de franquear acesso às informações da execução do Plano de Manejo da APA do Lajeado, de forma proativa, fácil, clara, ampla e tempestiva", declarou.

Registro de informações ambientais traz diversos benefícios

Sobre a atuação do MP, o ministro apontou que a sua intervenção é, costumeiramente, a medida extrema para imposição de deveres na esfera ambiental – em contexto no qual, como indica o caso dos autos, já houve o descumprimento de obrigações pelo Estado.

Em relação ao registro da APA nos imóveis abrangidos pela unidade de conservação, Og Fernandes destacou que, embora a Lei de Registros Públicos não tenha norma impositiva de averbação de áreas de proteção ambiental, tampouco há vedação legal. "Ao contrário: em atenção ao princípio da concentração, consta na lei previsão expressa quanto à possibilidade de averbações facultativas", disse o relator.

No mesmo sentido, ele lembrou que a Lei de Registros Públicos, em seu artigo 13, prevê a prática de atos de registro a requerimento do Ministério Público, quando a lei autorizar. Entre as hipóteses legais de atuação direta do MP, afirmou, está exatamente a proteção do meio ambiente.

"Assim, sendo o registro a 'certidão narrativa' do imóvel, nada veda que, a requerimento do MP, se efetue a averbação de fatos relevantes da vida do bem, com o intuito de ampla publicidade e, na espécie, efetivação e garantia dos direitos ambientais vinculados ao uso adequado de recursos hídricos para consumo humano", afirmou.

Em seu voto, Og Fernandes ainda enfatizou que a averbação das informações da APA no registro imobiliário traz vários benefícios, entre eles a identificação precisa dos imóveis e suas restrições, a informação sobre os limites impostos pelo plano de manejo e a conscientização coletiva sobre a existência da área protegida.

"Onde a lei estabeleceu as avenidas, descabe ao administrador criar becos; se a lei definiu as vias, deve o Estado pavimentá-las. Ao Judiciário compete remover barreiras, muros e desvios ao livre fluxo da informação administrativa – muito especialmente, a de caráter ambiental. Ou, em termos simples, fazer cumprir a lei, em toda a sua clareza", concluiu o ministro.

Leia o acórdão no REsp 1.857.098. 

Esta notícia refere-se ao(s) processo(s):REsp 1857098

Disponível en: <https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/27052022-Teses-da-Primeira-Secao-consagram-direito-a-informacao-ambiental-e-obrigacao-do-Estado-com-a-transparencia-.aspx>. Acesso em 12.03.2023

terça-feira, 7 de março de 2023

STJ - Falta de localização não impede penhora de veículo cuja existência tenha sido comprovada!

Falta de localização não impede penhora de veículo cuja existência tenha sido comprovada

A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) considerou cabível a penhora de veículo não localizado, desde que seja apresentada certidão capaz de comprovar a sua existência. Com esse entendimento, o colegiado deu provimento ao recurso especial interposto por uma sociedade de securitização de créditos que buscava a penhora de veículos em ação de execução de títulos extrajudiciais.

Na origem do caso, a exequente foi autorizada a consultar a existência de veículos no sistema Renavam, para possível restrição de transferência e efetivação de penhora, com a ressalva de que eles deveriam estar na posse dos executados. A decisão motivou a interposição de recurso ao Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR), o qual foi negado sob o fundamento de que a localização física do bem seria indispensável para a formalização da penhora.

No recurso apresentado ao STJ, a empresa questionou a exigência de localização do bem e sustentou que o único requisito para a lavratura do termo de penhora de veículo seria a prova de sua existência.

CPC prevê penhora independentemente da localização do veículo

De acordo com a relatora, ministra Nancy Andrighi, o Código de Processo Civil (CPC) estabelece que a penhora se concretiza, em regra, por meio dos atos de individualização e apreensão do bem a ser depositado, mas o próprio dispositivo legal prevê exceções referentes aos veículos.

Citando o parágrafo 1º do artigo 845 do CPC, a magistrada observou que a penhora será realizada por termo nos autos, independentemente do local em que estiverem situados os bens, quando for apresentada a certidão da matrícula do imóvel ou a certidão que ateste a existência do veículo.

Ela recordou que a execução e os atos constritivos dela decorrentes se desenvolvem no interesse do exequente (artigo 797 do CPC) e que "se, porventura, o bem penhorado jamais vier a ser encontrado, poderá ser substituído (artigo 848) ou realizada uma segunda penhora (artigo 851)".

No entendimento da ministra, caso a lavratura do termo de penhora de veículo fosse condicionada à localização do bem – que, concretamente, se dá em momento posterior –, não seria possível garantir o direito de preferência do exequente, que se inicia somente após o ato de constrição.

Medida prestigia princípios da efetividade e da razoável duração do processo

Para Nancy Andrighi, um possível hiato entre a lavratura do termo nos autos, a apreensão e a posterior entrega do veículo ao depositário, sem a formalização da penhora, daria margem para ações como a ocultação ou a alienação do bem por parte de um devedor malicioso.

"Assim, quando o exequente se manifesta pela penhora de determinado veículo, cuja prova de existência foi trazida aos autos, há de se viabilizar a penhora independentemente da sua prévia localização", destacou a relatora. A medida, segundo ela, é uma forma de privilegiar os princípios da efetividade e da razoável duração do processo, assim como os postulados da razoabilidade e da proporcionalidade.

"Em síntese, quando requerida a penhora de veículo automotor por interesse do exequente, dispensa-se a efetiva localização do bem para a lavratura do termo de penhora nos autos, bastando, para tanto, que seja apresentada certidão que ateste a sua existência", concluiu a ministra ao dar provimento ao recurso especial.

Leia o acórdão no REsp 2.016.739. 

Esta notícia refere-se ao(s) processo(s):REsp 2016739

Disponível em: <https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2023/07032023-Falta-de-localizacao-nao-impede-penhora-de-veiculo-cuja-existencia-tenha-sido-comprovada.aspx>. Acesso em 07.03.2023


sexta-feira, 3 de março de 2023

STJ - Quarta Turma não vê ilegalidade no uso de expressões exageradas em propaganda de ketchup!

Quarta Turma não vê ilegalidade no uso de expressões exageradas em propaganda de ketchup

A Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) considerou válidas as expressões "Heinz, o ketchup mais consumido do mundo" e "Heinz, melhor em tudo que faz", utilizadas pela Heinz Brasil S.A. em suas ações de publicidade. No mercado publicitário, essas expressões são conhecidas como claims – informações complementares normalmente inseridas nas embalagens e nos materiais de comunicação, como forma de destacar algum benefício do produto.

Ao rejeitar recurso especial da Unilever Brasil S.A., dona da marca Hellmann's, o colegiado entendeu que a Heinz se limitou a utilizar o recurso chamado puffing – exagero publicitário admitido pelo ordenamento jurídico brasileiro e que, segundo destacado no processo, é usado pela própria Unilever.

Na origem do caso, a Heinz entrou na Justiça depois que o Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar), acionado pela Unilever, determinou a suspensão do uso das expressões.

Em primeiro grau, o juiz considerou as expressões lícitas, mas, no caso do claim "Heinz, o ketchup mais consumido do mundo", determinou que a frase fosse acompanhada de fonte de pesquisa que confirmasse a informação. O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) rejeitou o recurso da Unilever.

Estratégia de puffing não torna o anúncio enganoso para o consumidor

No recurso ao STJ, a Unilever alegou, entre outros fundamentos, que a utilização dos claims pela Heinz caracterizaria publicidade enganosa. Segundo a empresa, por exemplo, o claim "melhor em tudo que faz" não seria passível de medição objetiva pelo consumidor.

Relator do recurso, o ministro Marco Buzzi entendeu não ser razoável proibir o fabricante ou o prestador de serviço de se autoproclamar o melhor em sua área de atuação, especialmente quando não há qualquer mensagem depreciativa contra os concorrentes.

"Além disso, a recorrente, em sua argumentação, realiza uma excessiva infantilização do consumidor médio brasileiro – como se a partir de determinada peça publicitária tudo fosse levado ao pé da letra –, ignorando a relevância das preferências pessoais, bem como a análise subjetiva de custo-benefício", afirmou.

Com apoio em entendimentos da doutrina, o ministro apontou que a estratégia de puffing, mesmo quando utilizada intencionalmente para atrair o consumidor mais ingênuo, não é capaz de tornar o anúncio enganoso, pois fica a critério de cada pessoa avaliar as qualidades do produto, ainda que a publicidade fale em "o mais gostoso" ou "o lugar mais aconchegante", por exemplo.

Empresa adota comportamento contraditório ao questionar claims da concorrente

Em seu voto, Marco Buzzi observou que, segundo a sentença, a Unilever tem utilizado há muitos anos a expressão "Hellmann's, a verdadeira maionese" e, no caso da sua linha de ketchups, também já aplicou claims como "o verdadeiro ketchup" e "o bom de verdade".

Para o relator, ao utilizar o recurso publicitário na divulgação de seus produtos e, ao mesmo tempo, alegar lesão quando a marca concorrente o faz, a recorrente adota comportamento contraditório e viola a boa-fé objetiva, "tendo em vista não ser razoável exigir a abstenção de um comportamento similar ao por si praticado".


Esta notícia refere-se ao(s) processo(s):

REsp 1759745


Disponível em: <https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2023/03032023-Quarta-Turma-nao-ve-ilegalidade-no-uso-de-expressoes-exageradas-em-propaganda-de-ketchup.aspx>. Acesso em 03.03.2023




 


quarta-feira, 1 de março de 2023

Seguradora poderá reter parte do valor do seguro D&O por expressa previsão contratual! Afastada Teoria Finalista Mitigada

Seguradora poderá reter parte do valor do seguro D&O por expressa previsão contratual

A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que uma seguradora poderá reter parte do pagamento da indenização do seguro de responsabilidade civil D&O, por haver expressa previsão contratual. O colegiado afastou a aplicação do Código de Defesa do Consumidor (CDC) no caso, tendo em vista que o segurado é pessoa jurídica com capacidade técnica suficiente.

Na origem, houve a contratação de uma apólice de seguro D&O, com o propósito de cobrir os riscos de eventuais prejuízos que os administradores da empresa, no exercício de suas funções, causassem a terceiros. Embora essa modalidade de seguro seja destinada, em regra, à proteção apenas dos executivos, a empresa negociou sua inclusão no contrato, mediante condições específicas, para o caso de reclamações no âmbito do mercado de capitais.

Após acordo em ação coletiva, a empresa pagou valores referentes a prejuízos causados a seus acionistas e ao mercado, mas não recebeu da seguradora o repasse do valor integral. Por isso, acionou a companhia de seguros na Justiça, requerendo a complementação da indenização securitária, no valor de R$ 6,3 milhões.

Cláusula estabelecia desconto no valor da indenização

Em primeira e segunda instâncias, o pedido foi julgado improcedente, ao fundamento de que, com o endosso realizado no contrato, foi admitida a participação proporcional da empresa no sinistro. No recurso dirigido ao STJ, a empresa sustentou que, à luz do direito do consumidor, deveria receber o valor integral da indenização.

O relator, ministro Marco Aurélio Bellizze, observou que houve um endosso no contrato do seguro, a fim de incluir na cobertura o risco relativo a perdas e danos originados no mercado de capitais. Conforme ressaltou, uma das cláusulas específicas negociadas estabelecia o desconto de 10% no valor da indenização securitária devida à pessoa jurídica no caso de sinistro.

O ministro ressaltou que a cláusula de participação foi redigida de forma clara, ficando nítida a anuência da contratante com a retenção de parte da indenização a que teria direito.

Ausência de vulnerabilidade impede incidência do CDC

Bellizze apontou que o artigo 2º do Código de Defesa do Consumidor (CDC) trouxe a possibilidade de se considerar consumidora uma pessoa jurídica, desde que seja a destinatária final do produto. No entanto – disse o magistrado –, o STJ adota a teoria finalista mitigada, que privilegia a análise da vulnerabilidade do adquirente do produto ou do serviço em cada caso, a fim de verificar eventual superioridade do fornecedor que justifique a incidência das regras protetivas do CDC.

"Considerar a segurada como hipossuficiente técnica não se mostra plausível, principalmente quando levadas em conta as atividades por ela exercidas e o seu porte econômico, possuindo assessoria e consultoria adequadas para a celebração de contratos de tamanha monta", comentou. O ministro também afirmou que, no caso, não se pode falar em contrato de adesão (artigo 54 do CDC), pois a negociação de cláusulas entre as partes afasta essa hipótese.

Além disso, Bellizze destacou o fato de que, embora possa haver relação de consumo no seguro empresarial quando a pessoa jurídica contrata a proteção do próprio patrimônio, o seguro D&O busca proteger a atuação dos administradores, servindo, assim, como um insumo à atividade da empresa.

Leia o acórdão no REsp 1.926.477. 

REsp 1926477

Disponível em: <https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2023/01032023-Seguradora-podera-reter-parte-do-valor-do-seguro-D-O-por-expressa-previsao-contratual.aspx>. Acesso em 01.03.2023


quarta-feira, 15 de fevereiro de 2023

STJ - Terceira Turma afasta aplicação do CDC e nega redução da taxa de ocupação de imóvel com alienação fiduciária

Terceira Turma afasta aplicação do CDC e nega redução da taxa de ocupação de imóvel com alienação fiduciária

No sistema de financiamento de imóvel com alienação fiduciária, caso o comprador inadimplente permaneça no local mesmo após a consolidação da propriedade em favor do credor, este tem direito à taxa pela ocupação indevida, a qual é fixada em 1% ao mês ou fração sobre o valor atualizado do bem, nos termos do artigo 37-A da Lei 9.514/1997, e não admite redução pelo Judiciário.

O entendimento foi estabelecido por maioria de votos pela Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ao reformar acórdão do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) que havia reduzido a taxa de ocupação para 0,5%, por considerar que, no caso dos autos, o percentual de 1% colocaria o consumidor em condição de excessiva onerosidade.

No julgamento, aplicando o princípio da especialidade, a Terceira Turma afastou a incidência do Código de Defesa do Consumidor (CDC) e do artigo 402 do Código Civil.

De acordo com os autos, após tentativa frustrada de anulação do contrato pelos compradores, a propriedade do bem foi consolidada em nome da construtora. Apesar da decisão judicial desfavorável, os compradores permaneceram na posse do bem durante mais de um ano e meio. Em razão do tempo de permanência no imóvel, o juiz de primeiro grau fixou a taxa de ocupação em 0,5% – sentença mantida pelo TJDFT. 

Conflito aparente de normas deve ser resolvido com base no critério da especialidade

No voto que prevaleceu na Terceira Turma do STJ, o ministro Ricardo Villas Bôas Cueva explicou que, embora o voto condutor tenha analisado a controvérsia a partir do artigo 402 do Código Civil, a questão sobre as consequências da ocupação indevida de imóvel pelo devedor fiduciante está regulada especificamente pelo artigo 37-A da Lei 9.514/1997, com redação dada pela Lei 13.465/2017.

Segundo o ministro, havendo mais de uma norma que, em tese, incida sobre o mesmo fato jurídico, é necessário considerar os critérios de especialidade e de cronologia estabelecidos pelo artigo 2º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro.  

"A partir desses parâmetros, é pacífica na jurisprudência desta corte a compreensão de que, em face de uma (aparente) antinomia normativa, a existência de lei posterior e especial regendo o tema determina a norma aplicável à hipótese concreta", afirmou.

O ministro também citou jurisprudência do STJ no sentido de que, na hipótese dos autos, também não são aplicáveis as regras do CDC, exatamente em razão do critério da especialidade das normas. Como consequência, ele considerou plenamente aplicável o artigo 37-A da Lei 9.514/1997, de forma a autorizar a incidência da taxa de ocupação no percentual de 1% sobre o valor atualizado do imóvel.

Leia o acórdão no REsp 1.999.485.

Esta notícia refere-se ao(s) processo(s):REsp 1999485

Disponível em: <https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2023/15022023-Terceira-Turma-afasta-aplicacao-do-CDC-e-nega-reducao-da-taxa-de-ocupacao-de-imovel-com-alienacao-fiduciaria.aspx>. Acesso em 15.02.2023


 

sábado, 12 de novembro de 2022

STJ - Violência doméstica: 15 interpretações que reforçaram a proteção da mulher em 15 anos da Lei Maria da Penha

Violência doméstica: 15 interpretações que reforçaram a proteção da mulher em 15 anos da Lei Maria da Penha

STJ 08.08.2021

Criada para prevenir e combater a violência doméstica e familiar, garantir punição com mais rigor aos agressores e proteger a mulher agredida, a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) completou 15 anos nesse sábado, 7 de agosto.

A lei cumpre determinações estabelecidas pela Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, da Organização dos Estados Americanos (OEA), aprovada em Belém em 1994 e promulgada pelo Brasil em 1996, por meio do Decreto 1.973.

O nome da lei é uma homenagem à farmacêutica Maria da Penha Maia, que ficou paraplégica depois de levar um tiro disparado pelo próprio marido, em 1983.

Ao alterar a redação da alínea f do inciso II do artigo 61 do Código Penal, o novo diploma legal possibilitou que agressores de mulheres no âmbito doméstico e familiar sejam presos em flagrante ou tenham a prisão preventiva decretada.

A lei também aumentou o tempo máximo de detenção no caso de lesão corporal leve em contexto familiar e doméstico, de um para três anos, estabelecendo ainda medidas como a saída do agressor do domicílio e a proibição de que se aproxime da mulher agredida e dos filhos.

Maior proteção jurídica p​​​ara as mulheres

Para o ministro Rogerio Schietti Cruz, a evolução legislativa ocorrida na última década evidencia uma tendência, também verificada em âmbito internacional, à valorização e ao fortalecimento da vítima, particularmente a mulher, no processo criminal.

Segundo o ministro, é papel das instituições que defendem a liberdade humana e o Estado Democrático de Direito criar mecanismos para fortalecer a mulher, "vencendo a timidez hermenêutica" na reprovação à violência doméstica e familiar. "O padrão sistemático de omissão e negligência em relação à violência doméstica e familiar contra as mulheres brasileiras vem sendo pouco a pouco derrubado", acrescentou.

Na comemoração dos 15 anos da Lei Maria da Penha, esta reportagem especial apresenta 15 interpretações do Tribunal da Cidadania que têm ajudado o Poder Judiciário a derrubar o padrão de omissão e negligência a que o ministro se refere.

Embora os índices de violência ainda sejam alarmantes – a cada ano, cerca de 1,3 milhão de mulheres são agredidas no Brasil, segundo dados do suplemento de vitimização da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) referente a 2009 –, por meio dos julgados do STJ é possível perceber que as mulheres estão, cada dia mais, abrindo a porta de suas casas para a entrada da Justiça.

1 – Suspensão do processo e tra​​nsação penal

Em um passo importante nessa evolução jurisprudencial, o STJ editou, em 2015, a Súmul​a 536, na qual estabeleceu que a suspensão condicional do processo e a transação penal não se aplicam na hipótese de delitos sujeitos ao rito da Maria da Penha, sendo proibida a concessão de benefícios da Lei 9.099/1995 – Lei dos Juizados Especiais.

No HC 196.253, a defesa de um homem condenado por agredir sua companheira solicitou a suspensão do processo por considerar que o artigo 41 da Lei Maria da Penha não vedaria a concessão do benefício quando se tratasse de contravenção penal.

Ao negar o pedido, o relator, ministro Og Fernandes, afirmou que, "alinhando-se à orientação jurisprudencial concebida no seio do Supremo Tribunal Federal, a Terceira Seção deste Superior Tribunal de Justiça adotou o entendimento de serem inaplicáveis aos crimes e contravenções penais pautados pela Lei Maria da Penha os institutos despenalizadores previstos na Lei 9.099/1995, entre eles, a suspensão condicional do processo".

2 – Ação pública inco​ndicionada

No mesmo ano, o tribunal editou a Súmula 542, fixando que "a ação penal relativa ao crime de lesão corporal resultante de violência doméstica contra a mulher é pública incondicionada" – ou seja, a propositura da ação fica a cargo do Ministério Público e não depende de representação da vítima.

Além disso, em 2017, a Terceira Seção revisou entendimento adotado no rito dos recursos repetitivos (Tema 177) para ajustá-lo à jurisprudência do STF, estabelecendo que também nos crimes de lesão corporal leve cometidos contra a mulher, no âmbito doméstico e familiar, a ação é pública incondicionada (Pet 11.805).

De acordo com o ministro Rogerio Schietti Cruz, autor da proposta de revisão de tese, a alteração considerou os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia.

3 – Substituiçã​​o de pena

Outro passo significativo foi dado pelo tribunal, também em 2017, com a aprovação da Súmula 588, definindo que a prática de crime ou contravenção contra a mulher no ambiente doméstico, com violência ou grave ameaça, impossibilita a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos.

Segundo o ministro Ribeiro Dantas, relator do HC 590.301, nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, é vedada a aplicação de penas de cesta básica ou outras de prestação pecuniária, bem como a substituição de pena que implique o pagamento isolado de multa, conforme o artigo 17 da Lei Maria da Penha.

"A Lei Maria da Penha veda a aplicação de prestação pecuniária e a substituição da pena corporal por multa isoladamente. Por consequência, ainda que o crime pelo qual o réu tenha sido condenado tenha previsão alternativa de pena de multa, como na hipótese, não é cabível a aplicação exclusiva de tal reprimenda em caso de violência ou grave ameaça contra a mulher", afirmou.

4 – Princípio da in​​significância

Súmula 589 do STJ preceitua ser inaplicável o princípio da insignificância nos crimes ou nas contravenções penais praticados contra a mulher no âmbito das relações domésticas.

No julgamento do AgRg no REsp 1.743.996, o ministro Reynaldo Soares da Fonseca explicou que a jurisprudência do tribunal veda a aplicação do princípio da insignificância, mesmo que o casal tenha se reconciliado após o episódio de violência.

Segundo o ministro, "não incidem os princípios da insignificância e da bagatela imprópria aos crimes e às contravenções praticados mediante violência ou grave ameaça contra a mulher, no âmbito das relações domésticas, dada a relevância penal da conduta".

5 – Indenização por dano​​ moral

Nos casos de violência doméstica contra a mulher, "é possível a fixação de valor mínimo indenizatório a título de dano moral, desde que haja pedido expresso da acusação ou da parte ofendida, ainda que não indicada a quantia, e independentemente de instrução probatória específica".

Essa foi a tese fixada em 2018 pela Terceira Seção ao julgar recursos especiais repetitivos (Tema 983) que discutiam a possibilidade da reparação de natureza cível por meio de sentença condenatória nos casos de violência doméstica.

Leia t​​​ambém: O que é recurso repetitivo

O relator, Rogerio Schietti, destacou que a Lei Maria da Penha passou a permitir que o juízo criminal decida sobre reparações relacionadas à dor e à humilhação da vítima, as quais derivam da prática criminosa e possuem difícil mensuração e comprovação.

O que se tem de provar, segundo ele, é a própria imputação criminosa; uma vez demonstrada a agressão à mulher, "os danos psíquicos dela derivados são evidentes e nem têm mesmo como ser demonstrados".

6 – Desnecessidade de c​​​oabitação

Um dos questionamentos enfrentados pelo STJ foi sobre a necessidade de coabitação para a caracterização da violência tratada nos dispositivos da Lei Maria da Penha.

O tribunal decidiu então que a relação existente entre o sujeito ativo e o passivo deve ser analisada em face do caso concreto para verificar a aplicação da lei, sendo desnecessário que se configure a coabitação entre eles (HC 184.990). No caso analisado pela Sexta Turma, foi reconhecida a aplicação da Maria da Penha por existir relação íntima de afeto familiar entre os agressores e a vítima.

"A hipótese, portanto, se amolda àquele objeto de proteção da Lei 11.340/2006, já que caracterizada a relação íntima de afeto, em que os agressores, todos irmãos da vítima, conviveram com a ofendida, inexistindo a exigência de coabitação no tempo do crime para a configuração da violência doméstica contra a mulher", afirmou o ministro Og Fernandes. O entendimento está consolidado na Súmula 600.

7 – Fama​​ e vulnerabilidade

Nos casos de agressão em razão do gênero, o fato de a vítima ser figura pública renomada não afasta a competência do Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher para julgar o delito. A decisão foi tomada em 2014, pela Quinta Turma, ao analisar caso envolvendo uma atriz que levou um tapa no rosto do namorado em público.

Para a ministra Laurita Vaz, a condição de destaque da mulher no meio social, seja por situação profissional ou econômica, não afasta a incidência da Maria da Penha, nos casos em que ela for submetida a uma situação de violência decorrente de relação íntima afetiva.

"A situação de vulnerabilidade e fragilidade da mulher, envolvida em relacionamento íntimo de afeto, nas circunstâncias descritas pela lei de regência, se revela ipso facto. Com efeito, a presunção de hipossuficiência da mulher, a implicar a necessidade de o Estado oferecer proteção especial para reequilibrar a desproporcionalidade existente, constitui-se em pressuposto de validade da própria lei", destacou a ministra.

8 –​ Execução d​​​e alimentos

Para o STJ, cabe ao Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher julgar a execução de alimentos fixados a título de medida protetiva de urgência em favor de filho do casal em conflito.

A decisão foi tomada em processo envolvendo uma mulher agredida pelo marido. Ela procurou a vara especializada em violência doméstica, pleiteando medidas protetivas – entre elas, alimentos provisionais, que foram deferidos pela juíza.


Segundo o ministro Moura Ribeiro, mesmo que a regra geral atribua a questão dos alimentos às varas de família, cabe ao juizado especializado – quando procurado pela vítima de violência doméstica – apreciar o pedido e, se for o caso, fixar a verba alimentar.

Negar o julgamento pela vara especializada, postergando o recebimento dos alimentos arbitrados como urgentes, seria "afastar o espírito protetivo da lei", afirmou o ministro.

9 – Ameaça a partir do e​​xterior

Compete à Justiça Federal apreciar o pedido de medida protetiva de urgência decorrente de ameaça feita a partir do estrangeiro, por meio de redes sociais, contra mulher que vive no Brasil. 

Assim decidiu o STJ no julgamento do CC 150.712, em 2018, quando a Terceira Seção analisou um suposto caso de crime de ameaça cometido por morador dos Estados Unidos contra a ex-namorada.

Com base em entendimento anterior do STF, o colegiado concluiu que, embora as convenções sobre combate à violência de gênero firmadas pelo Brasil não tratem do crime de ameaça, a Lei Maria da Penha concretizou o dever assumido pelo país nesse campo. O relator, ministro Joel Ilan Paciornik, destacou que esses acordos internacionais asseguram os direitos das mulheres e estabelecem recomendações para a erradicação de qualquer forma de discriminação e violência contra elas.

10 – Vínculo trabalhista e ​​salário

Em 2019, a Sexta Turma decidiu que o afastamento do serviço por até seis meses, quando isso for necessário para preservar a integridade física e psicológica da mulher em situação de violência doméstica, deve ser remunerado.

Para o colegiado, esse afastamento – previsto no artigo 9º, parágrafo 2º, inciso II, da Lei Maria da Penha – tem natureza jurídica de interrupção do contrato de trabalho; assim, analogicamente, a mulher tem direito ao auxílio-doença, o que significa que o empregador deve se responsabilizar pelo pagamento dos 15 primeiros dias, ficando o restante do período a cargo do INSS.

Segundo o ministro Rogerio Schietti, a lei assegurou a manutenção do vínculo empregatício, sem nada estabelecer quanto à remuneração. "A vítima de violência doméstica não pode arcar com danos resultantes da imposição de medida protetiva em seu favor", afirmou o magistrado. Na falta de norma legal específica, ele concluiu que a solução mais razoável é a imposição, ao INSS, dos efeitos remuneratórios do afastamento do trabalho.

O entendimento fixado pela corte se mostra ainda mais relevante quando consideradas as informações do estudo Participação no Mercado de Trabalho e Violência Doméstica contra as Mulheres no Brasil, publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), segundo o qual a ocorrência de violência doméstica contra mulheres que integram a população economicamente ativa é praticamente o dobro daquela que se verifica entre as que não estão no mercado de trabalho.

11 – Neto da patroa cont​​ra empregada

Em fevereiro de 2021, a Sexta Turma confirmou decisão do ministro Sebastião Reis Júnior para restabelecer sentença que condenou um homem por atentado violento ao pudor (atual delito de estupro) praticado contra a empregada doméstica da casa de sua avó.

O tribunal estadual, na análise de revisão criminal, entendeu que a vara especializada em violência doméstica seria incompetente para julgar o caso, e anulou a sentença condenatória. Como o neto não morava na casa da avó, a corte entendeu que não seria aplicável a Lei Maria da Penha, que prevê a competência da vara especializada.

Entretanto, segundo o ministro Sebastião Reis Júnior, relator do caso, a sentença registrou que o crime foi cometido em ambiente doméstico, tendo o neto da patroa se aproveitado do convívio com a empregada da casa para praticá-lo – situação que se enquadra na hipótese do artigo 5º, inciso I, da Lei Maria da Penha.

De acordo com o ministro, "o que se exige é um nexo de causalidade entre a conduta criminosa e a relação de intimidade pré-existente, gerada pelo convívio doméstico, sendo desnecessária coabitação ou convívio contínuo entre o agressor e a vítima, podendo o contato ocorrer de forma esporádica".

Ao restabelecer a sentença, Sebastião Reis Júnior ressaltou parecer do Ministério Público Federal segundo o qual a existência de relação hierárquica e a hipossuficiência da vítima não deixam dúvidas quanto a se tratar de um caso de violência doméstica contra a mulher.

12 – Abrangên​​cia ampla

A violência combatida pela Maria da Penha pode ser cometida por qualquer pessoa, inclusive por outra mulher, que tenha uma relação familiar ou afetiva com a vítima.

A Quinta Turma, no julgamento do AgRg no AREsp 1.626.825, por constatar a situação de vulnerabilidade, aplicou a lei a um caso de violência praticada por neto contra a avó.

Para o relator, ministro Felix Fischer, a Maria da Penha objetiva proteger a mulher da violência doméstica e familiar cometida no âmbito da unidade doméstica, da família ou de qualquer relação íntima de afeto.

Fischer citou precedentes da corte (entre eles, o HC 310.154) que consideraram, com base na doutrina, que estão no âmbito de abrangência do delito de violência doméstica as esposas, companheiras ou amantes, bem como a mãe, filhas, netas, sogra, avó ou qualquer outra mulher que mantenha vínculo familiar ou afetivo com o agressor. 

13 – Mãe vulnerável​​, filhas agressoras

Da mesma forma, para o STJ, nos termos do artigo 5º, inciso III, da Lei 11.340/2006, é possível a caracterização de violência doméstica e familiar nas relações entre filhas e mãe, desde que os fatos tenham sido praticados em razão da relação de intimidade e afeto.

O entendimento foi firmado pela Quinta Turma em 2014, ao negar habeas corpus (HC 277.561) para duas mulheres acusadas de constrangerem e ameaçarem a própria mãe. Elas pediam a anulação do processo instaurado no Juizado de Violência Doméstica e a desconstituição das medidas protetivas deferidas com base nos artigos 22 e 23 da Lei 11.340/2006.

Segundo o ministro Jorge Mussi, as instâncias ordinárias apontaram a condição de vulnerabilidade da mãe na relação com as filhas agressoras, o que justifica a incidência da Maria da Penha.

"Infere-se que o objeto de tutela da Lei 11.340/2006 é a mulher em situação de vulnerabilidade não só em relação ao cônjuge ou companheiro, mas também qualquer outro familiar ou pessoa que conviva com a vítima, independentemente do gênero do agressor", acrescentou o ministro.

14 – Retratação só diant​​​e do juiz

Embora a representação da vítima não seja mais necessária para a abertura da ação penal no caso de lesão corporal em ambiente doméstico, o STJ ainda julga casos relacionados à situação jurídica anterior. Em 2019, a Quinta Turma não conheceu de habeas corpus apresentado pela defesa de um homem denunciado por lesão corporal e estupro – crime para o qual a legislação penal também deixou de exigir a representação, em 2018.

Segundo o relator, Ribeiro Dantas, a Lei Maria da Penha estabeleceu em seu artigo 16 um procedimento próprio para a retratação da vítima nas ações penais públicas condicionadas, exigindo que a renúncia à representação fosse manifestada em audiência perante o juiz, e antes do recebimento da denúncia. Por outro lado, a jurisprudência da corte considera que, depois de oferecida a denúncia, a representação do ofendido será irretratável, conforme o disposto nos artigos 102 do Código Penal e 25 do Código de Processo Penal.

No caso julgado, após o oferecimento da denúncia, a vítima compareceu ao cartório da vara e expressou o desejo de se retratar. Com base nisso, o juiz rejeitou a denúncia. O tribunal estadual mandou que a ação prosseguisse, e houve a impetração do habeas corpus no STJ.

O ministro Ribeiro Dantas explicou que, como a retratação ocorreu somente em cartório, e não em audiência, foi correta a decisão da corte local. Quanto ao estupro, o relator também considerou que a retratação não deveria ter efeito, pois foi manifestada após o oferecimento da denúncia.

15 – Agressões c​​ometidas pelo ex

"A Lei 11.340/2006 buscou proteger não só a vítima que coabita com o agressor, mas também aquela que, no passado, já tenha convivido no mesmo domicílio, contanto que haja nexo entre a agressão e a relação íntima de afeto que já existiu entre os dois", anotou o ministro Napoleão Nunes Maia Filho no julgamento do CC 102.832, em 2009.

Ao analisar o HC 542.828, o ministro Reynaldo Soares da Fonseca refutou a tese defensiva de que a ausência de contemporaneidade entre o delito de injúria e o casamento do ofensor com a vítima – rompido 20 anos antes – impediria a incidência da Maria da Penha.

Para a lei – acrescentou –, é irrelevante o tempo de dissolução do vínculo conjugal, se a conduta tida como criminosa está vinculada à relação de afeto que houve entre as partes.

Em outro processo (HC 477.723), a defesa afirmou que a Maria da Penha não poderia ser aplicada, pois o acusado e a vítima estavam separados de fato havia 13 anos. No entanto, segundo a ministra Laurita Vaz, sendo o agressor e a vítima ex-cônjuges, "pode-se concluir, em tese, que há entre eles relação íntima de afeto para fins de aplicação das normas contidas na Lei Maria da Penha".

Parte dos processos mencionados no texto tramitou em segredo de Justiça, razão pela qual os números não são divulgados.

Esta notícia refere-se ao(s) processo(s):HC 196253Pet 11805HC 590301REsp 1743996HC 184990CC 150712AREsp 1626825HC 310154HC 277561CC 102832HC 542828HC 477723

Disponível em : <https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/08082021-Violencia-domestica-15-interpretacoes-que-reforcaram-a-protecao-da-mulher-em-15-anos-da-Lei-Maria-da-Penha.aspx>. Acesso em 12.11.2022

 

segunda-feira, 19 de setembro de 2022

Os quatro lados de um projeto de ruína: as pirâmides financeiras segundo a jurisprudência do STJ

Os quatro lados de um projeto de ruína: as pirâmides financeiras segundo a jurisprudência do STJ

De um lado, um grupo interessado em ganhar dinheiro por meio de uma estrutura montada apenas para beneficiar seus criadores, mediante a captação de recursos de indivíduos "recrutados"; do outro lado, uma grande quantidade de pessoas atraídas pela perspectiva de lucro fácil, mas normalmente alheia ao verdadeiro objetivo dos captadores; na terceira face, um discurso que mistura marketing, falsas promessas e a "venda" de sonhos; na última face, o verdadeiro propósito dessa suposta oportunidade: o pagamento para aderir ao sistema ou a exigência de compra dos produtos oferecidos pelos recrutadores, trazendo cada vez mais dinheiro para os idealizadores do negócio.

Essas são as quatro faces das chamadas pirâmides financeiras (ou Esquema Ponzi), sistema fraudulento identificado pela primeira vez há mais de cem anos, nos Estados Unidos.

Conforme explicou o ministro Reynaldo Soares da Fonseca no julgamento do CC 146.153, a pirâmide financeira se caracteriza por prometer ganhos cujo pagamento depende do ingresso de novos investidores. "Como, a partir de determinado momento, mostra-se inviável manter o ingresso de investidores em proporção suficiente para que suas novas contribuições arquem com os lucros prometidos àqueles que ingressaram previamente, o sistema não tem como se alimentar de recursos e entra em colapso, prejudicando aqueles que aderiram por último, uma vez que não chegam a recuperar nem mesmo o montante investido" – descreveu o magistrado.

O objetivo é beneficiar os que estão no topo da pirâmide

Outra forma de pirâmide, segundo o ministro, ocorre sob o disfarce de marketing multinível – um tipo de negócio, em princípio, legítimo, explorado por empresas sérias. Com frequência, porém, os negócios apresentados como marketing multinível escondem um esquema similar aos das pirâmides financeiras, no qual é oferecida aos associados uma perspectiva de lucros futuros irreais, cujo pagamento também depende do ingresso de novos investidores ou da aquisição de produtos para uso próprio pelos participantes, em vez de vendas para consumidores que não integram o esquema.

Como o objetivo é beneficiar os que estão no topo da pirâmide – em regra, os seus idealizadores –, o sistema acaba prejudicando a maior parte daqueles que são recrutados pela estrutura. No final, como são necessários cada vez mais recursos para manter a pirâmide, a tendência é o colapso do esquema – e a ruína dos participantes, que, muitas vezes de boa-fé, aceitaram integrar a organização, dedicando tempo e dinheiro ao projeto, e que jamais recuperam o seu investimento.

Organizar pirâmide financeira é crime, mas em que tipo penal a conduta se enquadra? E qual ramo da Justiça é competente para o julgamento do delito? Essas são algumas questões decididas nos muitos processos sobre pirâmide que já chegaram ao Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Pirâmides são definidas como crime contra a economia popular

No CC 146.153, a Terceira Seção estabeleceu que a captação de recursos por meio de pirâmide não se enquadra no conceito de atividade financeira para fins de incidência da Lei 7.492/1986 (que define os crimes contra o Sistema Financeiro Nacional), amoldando-se mais ao delito previsto no artigo 2º, inciso IX, da Lei 1.521/1951 (que dispõe sobre os crimes contra a economia popular).

No caso que deu origem ao conflito de competência, as investigações identificaram um esquema no qual as pessoas seriam atraídas para a realização de testes de jogos on-line, mediante aquisição dos produtos, com a promessa de remuneração pela participação nos testes e pela indicação de novos usuários para aderir ao programa. Na realidade, segundo a apuração policial, o dinheiro captado servia apenas para a remuneração dos idealizadores do esquema – um golpe que vitimou pessoas no Brasil e no exterior, com uma movimentação suspeita de mais de R$ 200 milhões. 

Instaurado o inquérito, a Justiça estadual de São Paulo se declarou incompetente para conduzir o caso, por entender que a ação continha indícios de crime contra o Sistema Financeiro Nacional – o que caracterizaria a competência da Justiça Federal. Ao receber os autos, a Justiça Federal suscitou o conflito, por entender que, em tese, seria o caso de crime contra a economia popular, de competência da Justiça estadual.

O ministro Reynaldo Soares da Fonseca lembrou que, nos termos da Súmula 498 do Supremo Tribunal Federal (STF), compete à Justiça estadual, em ambas as instâncias, o julgamento de crimes contra a economia popular.

Com base em informações do Ministério da Fazenda, o ministro apontou sete características que permitem identificar um esquema de pirâmide financeira:



No caso dos autos, Reynaldo Soares da Fonseca destacou que a conduta das empresas – correspondente a pelo menos quatro das sete características indicadas pelo Ministério da Fazenda – configurava não um delito contra o sistema financeiro, mas, sim, um crime contra a economia popular e, por consequência, de competência da Justiça estadual.  

Há bis in idem na imputação de estelionato e de crime contra a economia popular

No RHC 132.655, a Sexta Turma analisou a possibilidade da configuração do chamado bis in idem por causa da imputação ao réu, de forma conjunta, das condutas descritas nos artigos 171 do Código Penal (estelionato) e 2º, inciso IX, da Lei 1.521/1951 (crime contra a economia popular).

Os autos foram derivados da Operação Faraó, investigação que apurou pirâmide financeira estruturada sob a aparência de negócio de apostas em sites esportivos. Segundo a polícia, as vítimas eram induzidas a adquirir planos em dólares, cujos rendimentos seriam pagos em bitcoins. A empresa prometia que os ganhos na intermediação das apostas seriam suficientes para pagar os rendimentos dos investidores e, como prova do sucesso do negócio, seus administradores ostentavam carros e outros bens luxuosos, com o objetivo de despertar novos interessados.

No curso das investigações, foi constatada a desvinculação entre a captação de recursos e a aplicação no sistema de apostas, além da imposição de limitações aos investidores que desejavam retirar o dinheiro aplicado.

Com base nesses elementos, o Ministério Público denunciou os réus tanto por crime contra a economia popular – em virtude da especulação financeira e da falsa promessa de rendimentos fora da realidade – quanto pelo delito de estelionato – em razão do engano imposto às vítimas, que acreditavam estar investindo em bolsas de apostas estrangeiras quando, na verdade, estavam entregando seus recursos para usufruto dos empresários.

O ministro Rogerio Schietti Cruz, relator do recurso em habeas corpus, destacou que as circunstâncias dos autos – que motivaram as duas capitulações penais – são semelhantes, pois mencionam a prática de golpe e a indução das vítimas em erro.

Com base nos precedentes do STJ sobre a relação entre a identificação dos ofendidos e a tipificação do crime de estelionato, o ministro entendeu que, no caso, não havia justificativa plausível para a manutenção da denúncia em relação ao estelionato, sob pena de indevido bis in idem. Por consequência, a Sexta Turma determinou o prosseguimento da ação penal apenas pelo crime contra a economia popular.     

Pirâmides não constituem crime contra o mercado de capitais

Ao realizar o enquadramento penal das pirâmides financeiras, no HC 293.052, a Quinta Turma entendeu que esse tipo de estrutura fraudulenta também não se insere nos crimes contra o mercado de capitais (Lei 6.385/1976).

No caso analisado, uma empresa oferecia aos consumidores a oportunidade de se "associarem" a um sistema de venda de rastreadores, desde que pagassem uma taxa mensal para utilização do equipamento e comprassem um dos planos oferecidos, além de ficarem responsáveis pela venda de rastreadores. A empresa também prometia a distribuição de brindes milionários àqueles que trouxessem novos associados para o grupo.

Para o Ministério Público, na verdade, a negociação dos rastreadores escondia verdadeiro esquema de pirâmide financeira e, por isso, os réus foram denunciados pela prática de crimes contra o mercado de capitais, contra o sistema financeiro nacional, de lavagem de dinheiro e de organização criminosa.

O ministro Reynaldo Soares da Fonseca destacou que, embora o MP tenha apontado que as empresas exerciam atividades típicas de instituições financeiras, a própria descrição dos fatos afastava a ideia da existência de uma instituição financeira, o que impedia a aplicação da Lei 7.492/1986.

O relator também fez referência ao artigo 27-E da Lei 6.385/1976 – apontado pelo MP na denúncia –, o qual define como crime contra o mercado de capitais o exercício da atividade de administrador de carteira de investimentos ou assemelhado, sem autorização ou registro na autoridade administrativa competente.

Para o ministro, contudo, o dispositivo não atinge a conduta imputada aos réus, o que afastou a configuração de crime contra o mercado de capitais e a competência da Justiça Federal para julgar a ação penal.   

Determinação das vítimas diferencia estelionato do delito contra a economia popular

A Sexta Turma, no HC 464.608, estabeleceu as diferenças entre o crime de estelionato (artigo 171 do Código Penal) e o crime de ganhos fraudulentos em detrimento do povo ou de número indeterminado de pessoas (artigo 2º, inciso IX, da Lei 1.521/1951), tendo como base o cometimento do crime contra vítimas determinadas ou indeterminadas.

Na ação, o réu foi denunciado por estelionato, devido à participação em esquema que atraía pessoas por meio da oferta de opções de investimento com lucro acima da média do mercado. Segundo o depoimento de vítimas, a empresa da qual participava o réu prometia ganho mensal de 60% do valor investido em anúncios na internet, além de garantir que aquele que entrasse no sistema com a indicação de outro investidor receberia, imediatamente, 40% do valor aplicado.

No decorrer das investigações, a polícia constatou o esquema de pirâmide financeira, identificou diversos investidores lesados e, ao mesmo tempo, apreendeu com os administradores da empresa vários veículos de luxo e milhares de dólares.

Para o Ministério Público, estava configurado o delito de estelionato porque o réu, por meio da empresa, utilizava meios fraudulentos para a obtenção de vantagem indevida, por meio da atração de pessoas físicas e jurídicas pela internet.

Relator do habeas corpus, o ministro aposentado Nefi Cordeiro apontou que, de acordo com as informações dos autos, ficou claro que o esquema era direcionado para a captação de pessoas de forma genérica, em número indeterminado, "escapando da caracterização do tipo penal do estelionato, que exige vítimas específicas".

Como resultado desse entendimento, a Sexta Turma corrigiu a imputação penal para o delito contra a economia popular e, na sequência, reconheceu a prescrição da pretensão punitiva contra o réu.

Competência da Justiça Federal só ocorre se houver lesão a interesses da União

Na Terceira Seção, no CC 170.392, os ministros entenderam que, na falta de elementos que demonstrem a evasão de divisas ou a lavagem de dinheiro em detrimento de interesses da União, era de competência da Justiça estadual julgar crimes relacionados a uma pirâmide financeira focada em investimentos em criptomoedas.

Na ação que deu origem ao conflito de competência, uma das vítimas alegou que foi persuadido a investir nas moedas digitais, sob a promessa de que receberia lucro mensal de 55% sobre o valor aplicado.

Após o primeiro investimento, a vítima relatou que foi incluída em um grupo de WhatsApp cujos integrantes eram convidados a investir novos valores e a convencer outras pessoas a participarem do negócio. No total, a vítima aplicou mais de R$ 24 mil. Contudo, ela disse que, dois meses após o início dos investimentos, não era mais possível ter contato com a empresa, a qual teria se apropriado dos valores aplicados.

inquérito policial foi inicialmente remetido à Justiça Federal, mas o juízo suscitou o conflito de competência.

O relator, ministro Joel Ilan Paciornik, citou precedentes no sentido de que, em se tratando de crime contra a economia popular, de competência da Justiça estadual, o deslocamento dos autos para a Justiça Federal só seria possível se demonstrada a evasão de divisas ou o crime de lavagem de dinheiro em detrimento de bens, serviços ou interesses da União, ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas.

"Como se vê, o juízo estadual suscitado discordou da capitulação jurídica de estelionato, mas deixou de verificar a prática, em tese, de crime contra a economia popular, cuja apuração compete à Justiça estadual, nos termos da Súmula 498/STF. Ademais, ao declinar da competência, o juízo suscitado não demonstrou especificidades do caso que revelassem conduta típica praticada em prejuízo de bens, serviços ou interesse da União", afirmou o ministro.

Esta notícia refere-se ao(s) processo(s):CC 146153RHC 132655HC 293.052HC 464608CC 170392

Disponível em: <https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2022/18092022-Os-quatro-lados-de-um-projeto-de-ruina-as-piramides-financeiras-segundo-a-jurisprudencia-do-STJ.aspx>. Acesso em 19.09.2022.

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